Obras

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quinta-feira, 11 de junho de 2020

GENEALOGIA DO MAL


Não me tem bastado dizer que a natureza humana é isso, que o homem é aquilo, porque fico com a sensação de estar me repetindo - e estou -, e também com a de que o leitor está cansado de ler sempre a mesma coisa - e está. Pois bem, os dois últimos posts serviram como balão de ensaio para uma reflexão ainda mais funda. Por que o homem vem se comportando de maneira tão antissocial, quando ele é justamente um ser que só sabe viver em grupo? Algo está errado! A conversa de hoje caminha em duas direções: a causa dessa animosidade explosiva e o que a potencializa.


Não é só no terreno político que este comportamento rancoroso tem se manifestado com mais veemência. No campo esportivo também, e na ciência, na cultura, no cotidiano, onde qualquer debate dentro de regras civilizadas se transforma, num estalo, em zona de guerra. Essa conduta tem duas variáveis bem distintas: se a casa estiver pegando fogo, ou o sujeito continua ajeitando o nó da gravata, ou ele atira o gato nas chamas. No primeiro caso, alienação, no segundo, violência. É com esse que eu me preocupo. O gato também. 

As ciências sociais debatem as consequências dessas atitudes destemperadas, mas estou em busca da origem. Ao usar o reino animal como ponto de partida, afinal, somos todos animais, a resposta também não está lá. Todas as espécies fazem o que fazem não por maldade, mas por necessidade de sobrevivência, porque não têm escolha, é da sua natureza. Entre os mamíferos observa-se até mesmo uma “solidariedade desinteressada”, ausente nos humanos, quando uma da espécie ou o grupo socorre seus pares de um predador, ou se um deles apresenta alguma dificuldade, um atolamento inesperado, uma cria perdida, ou na defesa em bloco ante a iminência de um ataque.


Ocorreu-me então que um caminho a explorar seria o da genética, bem a propósito nesses tempos virulentos (em sentido duplo). Tanto quanto a Neurociência, a Genética é uma das áreas que mais investe no estudo da Saúde mental e corporal, e do Comportamento. Obviamente que outros fatores exercem influência no processo de modelagem do homem - sociais, psicológicos, históricos, culturais, religiosos, etc. “O fenômeno da violência é multifatorial”, diz o cientista Jari Tiihonen, do Karolinska Institutetda Suécia, que liderou uma pesquisa nessa área com a população finlandesa.

De acordo com os resultados das pesquisas, publicados na revista científica Molecular Psychiatry, os genes MAOA e CDH13 estão presentes em 10% dos criminosos violentos, e aumentam em muitas vezes os riscos de uma pessoa se tornar violenta. O genótipo, porém, não é frequente na população em geral, razão pela qual os autores entendem que os genes não podem ser considerados determinantes da criminalidade. Apesar de os estudos terem começado em meados dos anos 1990, na Holanda, as recentes investigações parecem confirmar a associação destes genes e sua comunicação com os neurônios. Diferentemente dos animais, o homem pode escolher não riscar o fósforo. Se não tem necessidade disso, por que o faz? Tiihonen esboça uma explicação:
Há muitas coisas que podem contribuir para a capacidade mental de uma pessoa. A única coisa que importa é a capacidade mental do criminoso para entender as consequências do que ele está fazendo e se ele pode ou não controlar o próprio comportamento.
Christofer Ferguson. da Stetson University, da Flórida, salienta que não há um ou dois genes que possam, por si só, representar um código para a violência: “De alguma forma, somos todos produtos da genética e do ambiente em que vivemos, mas não creio que isso nos tire a capacidade de discernir entre o certo e o errado”. Se Nietzsche falava em Genealogia da Moral, podemos falar em uma genealogia do mal? Se Hannah Arendt falava em Banalidade do Mal, como podemos conter nossa propensão para o mal? Se Bauman falava de Cegueira Moral, como podemos achar a rota de correção? Quando a Psiquiatria se une à Biologia e à Neurociência, muitas questões podem vir à luz. O quanto somos influenciados pelo ambiente? 


Para Kant (ele não poderia faltar), o homem é naturalmente afetado pelas boas e más disposições, e só se torna mau por sua livre vontade como um meio para a autossatisfação (sublinhado meu). O bem e o mal, na concepção kantiana, são princípios que subsistem por si na natureza humana e influem na formação do caráter do homem. Kant propõe que o homem é organizado ou predisposto para o bem, existindo, em sua natureza, “uma disposição em que absolutamente nada de mau se possa enxertar”. Entretanto, ele defende também que, para que a liberdade seja possível, é preciso haver uma tendência natural para o mal, ou seja, o mal deve existir como algo possível no exercício do arbítrio. 

Resumindo seu pensamento, e isso é fundamental entender, quando o homem submete o seu desejo à lei moral, ele é um bom homem; no entanto, se ele subordina a lei moral à satisfação de seus desejos, ele se torna um homem mau. A escolha de um fim implica a escolha dos meios para alcançá-lo. O mal não traz nenhum interesse para o ser racional por não ter nenhum valor intrínseco. O campo de exploração é vasto, e o objetivo hoje era mostrar que o mal, no homem, não é apenas um fator moral ou social, mas uma inclinação natural pautada também pela genética. Faltou discutir o que intensifica este comportamento, que fica para a próxima semana.

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* Genetic background of extreme violence behavior. Molecular Psychiatry, 20:786-792. oct 2014.
Immanuel Kant, A Religião nos limites da simples razão. Lusosofia. Lisboa, 1995.

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