Obras

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quarta-feira, 17 de junho de 2020



VITRINE DE EGOS


O que intensifica o comportamento antissocial? Foi essa a questão deixada em aberto no fim do post anterior, e a resposta é escancaradamente óbvia, dada pela quase totalidade dos autores, cientistas, analistas e filósofos: exibicionismo, com suas equivalentes narcisismo, ostentação, egolatria, autopromoção. cabotinismo, jactância, vaidade, etc. Dito isso, ao buscar uma arte para ilustrar o texto, consultei o Google para “exibicionismo” e o resultado foi deplorável: 95% de nu frontal feminino, seios e glúteos. É a degradação moral e depreciação estética da mulher por ela mesma.

O exibicionismo não é apenas do corpo, é também de opiniões, ideias, discursos, talento, trabalhos e arte, até um ponto de razoável exposição. Para além desse ponto, entram em cena aspectos psicológicos, psiquiátricos, educacionais, psicanalíticos e legais. Cresceu vertiginosamente a necessidade do indivíduo de se fazer notar, ou continuará sendo um mísero ninguém, um zero, imerso na insignificância e no esquecimento.

A era da comunicação digital dos últimos anos provocou uma explosão de super exposição imagética do sujeito e de todo tipo de verbalização de seu pensamento. Umberto Eco já preconizava que a internet daria voz e vez aos idiotas, e eles se multiplicam a uma velocidade viral. O indivíduo em todos os lugares ao mesmo tempo, onipresente, para ser visto, ouvido e admirado à exaustão numa autovalorização do ego. Exibicionismo, protagonismo, causar, acontecer, ser centro das atenções, ter seguidores e likes preenchem seu vazio. Não me ocupei em fazer levantamento sobre o material útil veiculado no Facebook, por exemplo, mas numa rápida mirada constatei que um número irrisório de postagens pode ser aproveitado. O mesmo vale para as demais plataformas, e quanto mais privativo o meio, mais censurável, mais impublicável será o conteúdo.

De todo modo, a questão é que, antes do surgimento das mídias digitais, o homem só expunha suas ideias entre quatro paredes, nas rodas de bar, reuniões, festas, no clube, em pequenos grupos. Agora, ele tem um canal poderosíssimo para fazer ecoar a sua voz, encontrar parceiros ideológicos, compartilhar subjetividades, neuroses, doutrinas, psicoses, ódios e ressentimentos, provocar, ofender, instigar, caluniar e ameaçar. A atividade em grupo fortalece o ser humano, lhe dá fôlego, inspiração, abrigo, ressonância, estímulos para propagandear e difundir seus objetivos, sejam quais forem, inclusive os ilícitos e os perigosos. No mercado há comprador para tudo, no virtual, então, não há fronteiras.

É importante acrescentar outros aspectos relevantes no excesso de “confiança” na rede. A difusão de fake news, desinformação, bullying e difamação, entre outros sortilégios, geralmente originados de falsos perfis, induzem a erros e danos irreparáveis. Todo perfil falso é esconderijo e antro de covardes. Como (ainda) não há normatização ou “senso ético” sobre o uso das redes, nem um sistema legal de segurança eficiente, a vigilância e a restrição ficam por conta das próprias plataformas, que bloqueiam postagens consideradas ofensivas, transgressoras e inapropriadas. Na pirâmide social, ninguém está imune à condenação, seja figura pública ou anônima, presidente ou servente. Nada impede, entretanto, a livre circulação de material pernicioso na deep web, o submundo sem lei da internet.

Mensagens ilegais estão sendo monitoradas e impedidas de circular: pedofilia, pornografia, terrorismo, incitação à violência, ameaça a instituições públicas ou privadas, à pessoa física ou jurídica, violação das leis de segurança nacional, intimidação, racismo, extremismo, truculência, intolerância, preconceito ou ofensa étnica, de credo ou de gênero e outras. Estas é que são verdadeiras “bombas de defeito moral”. Advogados, juristas, criminalistas, constitucionalistas, educadores, jornalistas, profissionais de mídia e demais instituições estão empenhadas em estabelecer diretrizes reguladoras para a liberdade de expressão nas mídias digitais, de modo a evitar medidas judiciais severas. Há uma longa e dura batalha pela frente, porque opera uma indústria muito bem montada de falsas notícias, células e facções criminosas com patrocínio suspeito, que insuflam o ódio, pregam a violência doutrinando a massa de modo astuto e persuasivo. Não sei se posso evocar o Zeitgeist - o espírito de uma época - como justificativa para o que estamos vivendo. E por que mão?

Porque o tempo está frenético, dando a impressão de “encolher”, escoar pelos dedos; o sujeito almoça jantando, dorme na segunda quando acorda já é sexta, beija sua mulher sem saber se está saindo ou chegando. O tempo todo conectado no mundo, o tempo todo desconectado de si. O tempo não tem mais tempo nem para ter um “espírito” que o defina. Essa “imaterialidade” ou “virtualidade” das relações humanas, sociais, econômicas e políticas são sintomas cristalinos de que mundo perdeu sua concretude estrutural, e a sedução por um projeto futuro de longo prazo deixou de ser verossímil, esfumou mais rápido que o giro dos ponteiros. Estamos na transição acelerada entre dois modelos de mundo: o que está deixando de ser e o que ainda não é e não sabemos como será. A pandemia não é nem rascunho dessa transformação. Os valores pétreos de um serão pó na visão do que está por vir. Daí o fim das utopias e o desencantamento do mundo, promovidos por um angustiante sentimento de insegurança, impotência, vulnerabilidade e medo, onde a ação reativa é o ataque, de preferência em grupo e sorrateiro.

Eu arriscaria dizer que o espírito que o tempo não tem é o do senso crítico, da ética coletiva, da noção real de cidadania, do valor moral de responsabilidade. Sem estes princípios, fica realmente difícil conduzir-se com decência, dentro ou fora das redes sociais. O que se publica revela o que se é, e se o que se vê em grande medida é matéria banal, nociva, falsa e inútil é porque a fonte também o é. Se o que se vê são selfies e sorrisos esterilizados e estetizados, é porque se procura pelo rosto perdido, e quem não tem um rosto não tem olhos para se ver, é um ego cego, facilmente manobrável a ser levado para onde quer que se queira levá-lo.



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