Obras

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sexta-feira, 26 de junho de 2020

A ILHA DOS MORTOS

L’île des morts
Arnold Böcklin
óleo s/tela, 1886


Excepcionalmente, hoje quero abordar um assunto fora do habitual deste blog, porque atendo à minha consciência e minha indignação. Tenho esse espaço para me expressar e sempre o fiz baseado na consistência de dados, e não teria porque ser diferente agora. Não se trata de mera opinião sem base e sem estudo. Estou atento ao farto noticiário nacional e internacional com o devido filtro crítico, aos fatos em sua inteireza, e também à literatura pertinente, porque só informação jornalística não basta. Deixo claro que sou apartidário, para dissipar qualquer dúvida a respeito, mas me incomoda, constrange, envergonha, revolta e causa náuseas ver este país mais destroçado do que já está. Só tenho o recurso da minha escrita como forma de acalmar o espírito, por isso o texto é longo e contundente, sem poupar ninguém.

Me inquieto ante a quantidade inominável de descalabros que está ocorrendo no país e corroendo nossa vida, por conta da mais absoluta incompetência e irresponsabilidade de um governo acéfalo e disruptivo em toda a sua estrutura hierárquica. O mundo nos olha atônito e assiste com desconfiança ao cenário político caótico em pleno curso de uma crise sanitária sem igual e em seu momento mais agudo. Algumas nações declararam abertamente distanciamento deste país, com graves prejuízos comerciais e econômicos, com séria possibilidade de sanções. Equiparado aos regimes autocráticos mais danosos, a reputação deste país, hoje, é a pior em toda a sua história, comparada a uma latrina, em razão da quantidade de embaraços diplomáticos, crimes ambientais e errâncias diversas, entre outros vexames.


Um país desgovernado e um ministério-chave inoperante e sem ministro é tudo o que não precisamos. São meses à deriva com um governo apalermado, e o povo tentando se salvar como pode. Os que não conseguem sobreviver são jogados na vala e apagados do obituário. O simulacro de ente mitológico entronizado, que se julga acima da lei e da ordem, é vocacionado para o confronto, a discórdia, o enfrentamento, a cizânia, incapaz de um único ato minimamente ético, sendo indigno do cargo que ocupa. Tentando sobreviver politicamente e se livrar de seu destino certo e merecido, cerca-se de uma súcia de sabujos, nomeia apadrinhados, aventureiros ineptos e inaptos, manobra nas coxias para safar-se de acusações de improbidade e outras mais graves com conchavos, chicanas protelatórias, afagos oportunistas hipócritas, e para intimidar ou silenciar opositores e desafetos. Cada dia mais amedrontado, acuado e isolado, ajoelha servil e rendido, fatiando e vendendo o país a uma máfia de larápios parasitas, enquanto o país assiste, incrédulo, sem saída. 


Parafraseando o poeta, mas sem fazer poesia, os generais que aqui comandam não comandam como lá, porque aqui não comandam nada. Omissos, pífios, sem apreço pela cultura, polidez e reflexão, esbanjam arrogância. Faltam-lhes a sobriedade e a envergadura que a patente exige. Se tivessem atitude, se honrassem a farda que vestem e a Constituição que juraram defender e obedecer, jamais seriam coniventes com a barbárie institucional deflagrada neste país. Em nome da ética, jamais deveriam aceitar qualquer cargo público. Erraram feio na aposta de um governo sereno sustentado pela tropa de retaguarda não ideologizada e apolítica como “guardiã da ordem”. Ao contrário, no entanto, são os primeiros a profanarem a Carta Magna, marchando sobre ela com seus coturnos ao apoiarem atos contra a democracia e os demais Poderes. Se não querem cumplicidade com a baderna, que voltem para a caserna. O que vai ser? Não podem ficar com evasivas, ameaças e insinuações ambíguas, a menos que estejam cortejando uma intervenção no Estado. Estão? E o país adoece, refém do medo.

Seria honroso, e inteligente, ao menos para salvaguardar o respeito e a dignidade, que se declarassem demissionários das funções para as quais nunca estiveram capacitados, como demonstram os sucessivos erros, pronunciamentos e atos contraditórios. Seria recomendável que se mirassem no exemplo da maior autoridade militar americana, Chefe do Estado-Maior, General Mark Milley, que se desculpou publicamente por ter participado de ato político ao lado do Presidente Trump:
O resultado da minha foto na Praça Lafayette foi visto por todos vocês. Aquilo provocou um debate nacional sobre o papel das Forças Armadas na sociedade civil. Eu não deveria estar lá. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna. Como oficial da ativa uniformizado, foi um erro com o qual aprendi. Devemos defender o princípio de um Exército apolítico, que está tão profundamente enraizado na própria essência de nossa república. Isso leva tempo, trabalho e esforço, mas pode ser a coisa mais importante que cada um de nós faz a cada dia.
Qual parte do discurso nossos senhores generais não entenderam? A História nos conta com fartura: sempre que militar ascende ao poder, boa coisa não é. Governo armado fede a naftalina, pólvora e enxofre em permanente tensão. Por que seria diferente aqui e agora? Não adianta escamotear a realidade com pajelança, falácias e desmentidos, pois os mortos estão aí em número crescente dia após dia. Não adianta subtrair, eles continuam a somar. Morto não se esconde, se enterra, e eles chegam hoje a mais de 50 mil em três meses de uma quarentena desdenhada pela população e desincentivada pelo governo. O país caminha para o topo da mortandade e vai continuar padecendo por culpa exclusivamente sua.


Não adianta querer dividir a nação com uma facada, ela - a nação - é muito maior que a carne que ela - a facada - rasgou. Não adianta arreganhar os dentes sujos de sangue e vociferar e prevaricar, o que manda é a rédea curta, e quando ela refreia a demanda sistemática de medidas arbitrárias sem amparo legal, transgressões tão orgânicas quanto a burrice é visceral, o rito é enfiar o rabo entre as pernas, baixar as orelhas e obedecer, sem espernear. Nunca houve precedente de uma camarilha de figuras tão desprezíveis em torno de uma única mesa fingindo governar, espancando a língua pátria com vocabulário chulo e ofensivo, sua identidade fundadora, sua estética de comunicação.


É um governo aquartelado em sua bolha de mentiras, vícios, fantasias, imundície, tramoias e manipulações, inteiramente avesso, surdo e cego à realidade externa. Quando ela bate à porta, quem atende é o “ministério da verdade”, que engendra uma alquimia estranha de modo a encaixar os fatos à sua lógica, sua versão, sua, recriando uma narrativa conforme a realidade conveniente, ficcional - autoverdade. E o país, traumatizado, sitiado, tenta se equilibrar numa gangorra escorregadia ao enfrentar uma doença pestilenta fora de controle, de um lado, e de outro, lidar com a hemorragia moral de um governo com fratura exposta necrosada. Como se não bastasse, ainda tem que esperar pelo dia seguinte na mais completa escuridão, sem luz em túnel algum. É no que dá governar em causa própria, nem a chama de uma vela afasta os fantasmas que a cada fato novo que surge no horizonte assombram um governo agonizante.

Este é mesmo um país singular, mas não como gostaríamos que fosse. É o único que, em meio a uma pandemia, não tem um Ministério da Saúde nem um ministro de verdade; o arremedo de ministro que lá está lá não está, nem médico é, desceu de paraquedas no cargo, paraquedista que é, mas errou o salto e caiu num buraco. Seu antecessor, que médico era, não sabia nem pronunciar nome de remédio. Resumo da ópera-bufa, uma política de saúde pública relapsa, num descaso imperdoável.

Os titulares das demais pastas e órgãos, militares e civis, com raríssimas exceções não estão qualificados para os cargos que ocupam. A troca de nomes não cessa, por óbvio, e o novo indicado é sempre uma reencarnação em vida, piorada, do substituído. Destemperados, amadores, de intelecto raso e mente perturbada, confusos, desconexos, iracundos, apedeutas sem o menor trato com a compostura e a educação. A bandalheira é geral e o povo que se dane. 

Temos um governo civil militarizado, onde general cinco estrelas é ordenança de oficial inferior, escumalho da política, expulso por insubordinação, acusado de atentado terrorista, punido com prisão disciplinar. País singular é assim. Um antigoverno doente que comete crime de lesa-humanidade ao instituir protocolo para uso de droga que sabidamente não cura e pode matar. Disléxico, sob o pretexto de “salvar a economia”, conclama seu povo a voltar às ruas para trabalhar, consumir, aglomerar, contrariando o que o resto do mundo fez, e quem não fez paga um alto preço. E o povo sai massivo, manada obediente que é, e a curva da morte volta a subir.

Para encerrar, temos um governante celerado que libera armas pesadas e munição à vontade para que todos se defendam, mesmerizado e mimetizando os mais insanos reinados, impérios, tiranias e dinastias que o mundo já viu. Truculento, falastrão, alardeia “bala na agulha” com tambor vazio; um vice que se compraz com tanques e canhões, um hediondo “gabinete do ódio” e, o mais bizarro, um trio de de alucinados “co-presidentes” que atua numa corte paralela dizendo quem entra e quem sai do “Palácio”. Um acinte inaceitável. Um prédio que abriga um ministério da verdade, um gabinete do ódio, um escritório do crime e um puxadinho presidencial, tem rachadinhas na estrutura e não vai resistir muito tempo, uma hora desmorona.

Por tudo isso e pelo que mais não foi dito, é preocupante saber que estamos, de fato, à mercê de um maníaco, desequilibrado, amoral, grosseiro, imaturo, vulgar e autoritário. Arquiteto da destruição, ostenta o signo do ódio, articula o retrocesso, faz apologia dos estados totalitários e ditatoriais, instiga compulsivamente o descumprimento das regras institucionais e constitucionais e fomenta a desobediência civil, julgando-se blindado e inimputável. Não está e não é, e as consequências estão a caminho. Quanto mais no fundo do poço, mais esticada a corda. Parafraseando outro poeta, no meio do caminho há um abismo, há um abismo no meio do caminho, e não se dança à beira do abismo na rota do furacão. O retrato deste país, hoje, mostra que ele é mesmo tão singular que, desterrado de si mesmo, tornou-se insular: a ilha dos mortos.

Um comentário:

  1. Imagina agora... E o que mais precisará fazer esse desgoverno para que a gente se revolte de verdade?!

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