Obras

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sábado, 3 de dezembro de 2016

"A crença é o amparo dos ignorantes"

carlosalbertoreis51@gmail.com



A frase que se lê no título por estar entre aspas significa que alguém a proferiu. Não foi sociólogo, pensador, filósofo, mas um amigo que você já se habituou me ver debatendo e que "patrocina" muito do que escrevo aqui. É o estereótipo do indivíduo platônico, que se apoia em várias doutrinas e práticas metafísicas para sustentar suas convicções. Veja bem, nada contra, cada um deve seguir seu caminho na direção em que o nariz aponta. Eu sigo o meu, você o seu, ele o dele. O que peço é coerência, o que parece não ser o caso deste amigo. Vejamos como foi o diálogo.


A conversa seguia trivial até que o assunto deslizou para filosofia, religião, budismo... "Não discuto a Lei do Karma. Enquanto estiver encarnado sigo e cumpro essa Lei Maior. No 'outro lado' as leis são outras". O que fica bastante evidente, mesmo para quem abraça a filosofia budista, é o temor da morte, eufemizado por ele com "A vida é um processo contínuo e a morte apenas a volta para casa". Ele está falando de reencarnação, e a expressão "volta para casa" tem um evidente caráter consolador e de aconchego diante do inevitável.

Foi então que ele veio com as palavras de Buda: "Não sigam o que eu digo, experimentem por si; não acreditem em alguém só por que diz que esse é o caminho certo; vivam a experiência do viver, sem crenças; não acreditem em coisas que não sejam verificáveis". O itálico é meu e dispensa comentar. Meu interlocutor erra quando define "budismo é religião sem Deus", ao que retruquei: "Se Buda estivesse vivo daria um bico nos fundilhos de quem afirma tamanha asneira". Leia o que escrevi sobre budismo no post anterior. Buda à parte, lembrei a ele, usando as palavras do seu mestre, que devemos sim ter referenciais e balizadores de conduta, mas não para serem obedecidos e sim pensados e discutidos. Mas vamos ao que interessa. 

Logo após ter escrito a tal frase do título, eu o questionei sobre a sua crença em disco voador, que defende com ardor. Sua resposta quase me fez cair da cadeira: "Eu acho que disco voador não existe. O que existe é um fenômeno a ser identificado. Não há como negar isso". Por que do meu espanto? Ora, a afirmativa abaixo é assinada por ele desde sempre, e se isso não for incoerência, não sei o que é:
     
Os discos voadores existem; são veículos tripulados por seres inteligentes provenientes de civilizações longevas e avançadas que nos visitam há milhares de anos com os mais diversos objetivos.

Mais direto e convicto impossível. Assumindo a autoria, ele veio de novo  com aquela mofada ladainha de que não se pode ignorar centenas de relatórios militares etc, etc, e coroou a conversa com: "Eu não acredito, eu sei que eles existem". O que chama atenção não é a incoerência apenas das afirmações conflitantes - disco voador não existe... os discos voadores existem..., mas no fato de ele seguir à risca os preceitos budistas mas na prática adotar postura contrária! Releia o destaque das palavras de Buda.

Não sei se você percebeu que eu fui quase socrático, deixando que ele próprio se enroscasse nos argumentos. Fiquei com a impressão de que ele não se deu conta de ter caído em contradição, embora tenha dado uma 'saída estratégica' das mais bisonhas: eu sei que eles existem. Esse recurso de botar um ponto final na conversa antes de ela esquentar os motores é típico de quem sente que 'o bicho vai pegar'. É a pedagogia impositiva do pregador: é assim porque eu sei que é assim! Já vi esse filme inúmeras vezes, conheço os atores, as falas, o roteiro.

Como digo sempre, o pensamento crítico é o único capaz de remover a casca do dogmatismo, de nos tirar da zona de conforto para fazer algo mais do que simplesmente existir por existir. Kant sustentava a ideia de que, para alcançar a "maioridade", precisamos assumir nossas escolhas através de um esforço de autonomia e racionalidade. Autonomia e racionalidade. Minha posição frente às crenças de um modo geral é clara e sem reservas: crença é cabresto, redoma, monólogo; castradora, astuciosamente aliciante, primitiva, dissolutiva, predatória, previsível, lenitiva, paroquial, pasteurizada, prescritiva, egoísta, trazendo conforto e felicidade só para o crente. Ou seja, belisca a pele, não chega às vísceras. Gosto do que escreveu Rubem Alves: "Ostras felizes não fazem pérolas". 



Permita-me encerrar com uma rápida digressão. Ainda não li a obra do Rubem¹, mas a metáfora da ostra se encaixa à perfeição para definir crédulos cegos: um molusco inofensivo sem ossatura interna, de casca grossa, dura e rugosa que o protege de 'ataques externos'. A ironia: para produzir pérolas, a ostra deve permitir a entrada de um grão de areia, um corpo estranho, áspero, que machuca, causa dor e sofrimento. Outra metáfora: O fruto só é depois que a semente quebra a casca.

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¹  Alves, Rubem. Ostra Feliz não faz Pérola. Planeta, 2012.
Eliade, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas. Jorge Zahar, 2011.

Um comentário:

  1. " Sirvamo-nos de nosso próprio apoio , de nossa própria verdade e de nossa própria luz "

    Buda

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