Obras

Obras

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Uma voz sólida em um mundo líquido



Já que estamos em época de natal, resolvi fazer uma pausa no debate com o leitor para trazer de presente um texto de capital importância daquele que é um dos mais importantes nomes da atualidade para entendermos este nosso conturbado mundo contemporâneo, 'pós-moderno', ou ainda mundo 'líquido'. Estou falando de Zygmunt Bauman. O que há de tão especial que o justifique? De especial, nada, de relevante, tudo. Fala de utopias, e você, que me acompanha com assiduidade neste blog (assim espero, senão, perdeu muita coisa), há de notar pontos de semelhança com tudo aquilo que venho despejando ao longo deste ano. Óbvio, não é coincidência.

Devo ressaltar, contudo, que o texto em questão foi extraído de uma obra a qual eu não havia lido até a semana passada, portanto, nunca fui influenciado diretamente por ela, embora não negue a presença do autor no percurso dos meus estudos, e nem poderia ser diferente. É uma reflexão atemporal, ou melhor ainda, pantemporânea, contínua. Então, vamos a ela, dispensando comentários.


Agora fique com Bauman.

Numa sociedade de caçadores, a expectativa do fim da caçada não é sedutora, mas aterrorizante. Seria um momento de falha pessoal. As trompas de caça convocariam novas aventuras, os cães uivariam, estimulando deliciosos sonhos de antigas caçadas; por toda parte, outros estariam na busca frenética de suas presas, não haveria fim para a agitação e para os clamores de júbilo. Só eu estaria de lado, excluído e afastado da companhia, indesejado e condenado a ficar longe da alegria; uma pessoa com permissão de assistir à folgança dos outros por detrás da cerca, mas a quem se nega a oportunidade de participar.

Se a vida da caça é a utopia de nossa época, ela também é, em contraste com suas antecessoras, a utopia de uma aventura sem fim. Na verdade, é uma estranha utopia. Suas antecessoras foram seduzidas pela expectativa do fim da estrada e da labuta, enquanto a utopia dos caçadores é um sonho em que estrada e labuta jamais terminam. Não é o fim da jornada que estimula o esforço, mas sua infinitude.

Essa é uma utopia estranha e não ortodoxa, mas, não obstante, uma utopia, como as outras que a antecederam, prometendo o que, afinal, é uma recompensa inatingível, uma solução definitiva e radical para todos os problemas humanos, passados, presentes e futuros, assim como um antídoto também definitivo e radical para todos os males e aflições da condição humana. É uma utopia não ortodoxa porque apresenta uma terra de soluções e curas, dos “lá e então” do futuro distante até os “aqui e agora” do momento presente. Em vez de uma vida que leva à utopia, aos caçadores se oferece uma vida na utopia. Para os “jardineiros” a utopia era o fim da estrada, enquanto para os “caçadores” a própria estrada é a utopia. (Será que não deveríamos, nesse caso, trocar o termo “u-topia” pelo termo “u-ambulatio”?)

Os jardineiros viam no fim do percurso a realização e o triunfo final da utopia. Para os caçadores, chegar ao termo da estrada seria a derrota final e ignominiosa. A humilhação se acrescentaria às mágoas já existentes, transformando esse recesso em derrota pessoal. Como outros caçadores não deixariam de caçar, a exclusão da caçada permanente se tornaria sinônimo de desgraça, de vergonha da rejeição e, em última instância, de opróbrio, por estar exposto às próprias deficiências.

Agora, fique com você. 

_______________

Zygmunt Bauman, A Cultura no Mundo Líquido Moderno. Zahar, 2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário