A revisão historiográfica calcada na
análise crítica dos fatos, somada ao rigor metodológico de uma investigação
isenta de paixões e não tendenciosa obedece a uma das prioridades da cultura
comunicacional: Conhecer o
mensageiro para melhor decifrar a mensagem. As sessões de leitura que Lúcia
tinha com sua mãe precisam ser consideradas: histórias da vida dos santos e passagens de uma obra muito influente na época, "Missão
Alvorada", do padre Manuel Couto, onde se falava do Inferno
em termos medievais, com descrições de suplícios e horrores infligidos às almas
pecadoras. Foi nesse ambiente que Lúcia daria seus primeiros passos rumo a clausura que viria logo depois, muito provavelmente fortalecida pela sua experiência visionária.
Outro dado importante de
implicações diretas com Fátima diz respeito ao contexto político e ideológico
daquele período. Portugal vivia um ambiente de intolerância religiosa pelo
excessivo anticlericalismo jacobino dos arquitetos da Primeira República, proclamada
em outubro de 1910. Além disso, havia muita incerteza e temia-se pela vida dos
jovens soldados portugueses em combate na França. Para os líderes republicanos,
os acontecimentos da Cova da Iria eram entendidos como atos de exploração da
crendice popular pelas forças antirepublicanas e monárquicas revanchistas. Note-se que Portugal tinha 75% de população
analfabeta, vulnerável a rumores, superstições, crendices e toda sorte de
imposições culturais.
Nesse intrincado cenário político e social, as aparições
ocorreram no mesmo momento em que a Nova República assumia o poder e estreitava
suas relações com a Igreja. Portanto, eram "bem vindas", pois
sedimentavam a hierarquia católica e se integravam à ancestral tradição mariana
ancorada no imaginário mítico português. Em 1863 seria construído o santuário
do Sameiro, ainda sem o estrépito das peregrinações fatimistas. Para consolidar
essa "união mística" entre a Coroa e a Igreja Católica, em 26 de
março de 1646, por requerimento de D. João IV, Nossa Senhora de Fátima foi
consagrada Padroeira de Portugal.
Em 1929 o Papa Pio XI realiza a benção de uma estátua da Virgem
de Fátima, em Roma, ratificando a validade do culto relativo às aparições. Em
2017, o Papa Francisco, em sua visita ao Santuário, promulga a canonização dos
dois primos de Lúcia, Jacinta e Francisco, falecidos em 1919 e 1920. Um
conveniente jogo de cena de grande apelo popular. Irmã Lúcia entrou para o
claustro aos 14 anos e lá viveu até a sua morte, em 2005. Como Fátima
já não era suficiente para sustentar suas débeis crenças, ela alegou ter tido novas
visões da Virgem e de Jesus,
entre outras entidades celestes (esse
grifo é meu). Quanto às alegadas "mensagens", estas poderão ser
comentadas em outro momento, tendo por base os trabalho de Fernandes e outros
autores.
Pelo conjunto de aspectos aqui sumariamente apresentados,
pelos estudos de largo espectro conduzidos por especialistas de diversas áreas
e pelas reflexões de cunho filosófico, sociológico, cultural, histórico e
psicológico de anos, Fátima se apresenta como um fenômeno emblemático muito
além da marianofania. Como diz o próprio Fernandes, Um património
imaterial e um fundo cultural ancestral da nossa matriz genética enquanto
comunidade e mantêm vivas e persistentes as expressões de um pensamento mágico
e da sua estrutura mítica profunda.
E aqui retomo a menção rápida do primeiro post de que nos encontramos diante de um quadro emoldurado pelas instâncias do real, do simbólico e do imaginário, que se tocam e, em certa medida, combinam-se num caldo de discussões multidimensionais. Acho que, neste caso, não preciso me estender em explanações sobre um e outro e outro porque seria afrontar a sua capacidade de apreensão. Já sou grato por saber que esta síntese tenha sido aprovada pelo autor do artigo.
E aqui retomo a menção rápida do primeiro post de que nos encontramos diante de um quadro emoldurado pelas instâncias do real, do simbólico e do imaginário, que se tocam e, em certa medida, combinam-se num caldo de discussões multidimensionais. Acho que, neste caso, não preciso me estender em explanações sobre um e outro e outro porque seria afrontar a sua capacidade de apreensão. Já sou grato por saber que esta síntese tenha sido aprovada pelo autor do artigo.
São as palavras finais do amigo historiador que revelam as tintas originais desse moderno palimpsesto: A Igreja Católica acabou por se apropriar dos fenómenos de Fátima, talvez a única instituição no tempo capaz de o fazer, dado o desinteresse e incapacidade da ciência da época. Lúcia, qual donzela sacrificada a deuses ancestrais, foi encerrada e silenciada para que outra Fátima surgisse, mais lógica, mais integrada nos cânones católicos. Lúcia e os primos foram eles e também as suas circunstâncias, os seus limites e possibilidades, como lembra o cardeal Josef Ratzinger, o Papa emérito Bento XVI. Prisioneiros do nosso espaço-tempo e da nossa cultura, ponderamos aqui hipóteses interpretativas que não se coadunam com as necessidades dos crentes que repelem o uso da razão em matérias de fé. Mas, por força das nossas limitações humanas, cada um é livre de acreditar naquilo em que quer acreditar.
Somos tentados a ver na história de Fátima, na versão popular
católica e do maravilhoso cristão, uma réplica das narrativas do “país das
maravilhas”, o “mundo de Oz”, – ou mesmo o mundo das fadas e das mouras
encantadas tão presentes nos nossos arquétipos míticos – onde irrompem as mais
fecundas imagéticas do onírico universal, e onde Lúcia dos Santos faz de
Dorothy Gale ou de Alice. O complexo estruturante de Fátima traduz um ponto de
chegada, um ponto Ómega onde se fundem longínquas correntes culturais, cujos
afluentes participaram da construção do nosso inconsciente coletivo e que
definiram a sensibilidade feminina da religião popular portuguesa. Portugal foi
sempre um país desde a nascença ligado a mitos estruturais. Um país alimentado
por prodígios, profecias e espantos. Mas, como lembra Fernando Pessoa, “o mito
é o nada que é tudo”…
Joaquina- Ó Lúcia, o que é que tu viste?
Lúcia – Vi uma
Senhora.
Joaquina –
O que é que tu lhe perguntaste?
Lúcia –
Perguntei quem era vossemecê.
Joaquina –
E o que é que ela te respondeu?
Lúcia –
Ela esticou um dedo para cima.
Resta por descobrir o que fica na direção do “dedo esticado” da
Senhora sob o céu de Fátima/Cova da Iria. Como avisa Confúcio, não detenhamos o
nosso olhar no dedo…
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Para quem quiser saber mais sobre as análises contemporâneas de Fátima, indico os
seguintes links:
Artigo original: https://athena.pt/2017/05/11/116/
Documentário Conversas
do Centenário com Joaquim Fernandes e convidados, Porto Canal. Seis
episódios, um por mês, até outubro. Os dois primeiros já foram ao ar: http://portocanal.sapo.pt/um_video/pa1CmJJsNRhMNViurNgf/
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