Obras

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sexta-feira, 23 de junho de 2017


O real , o simbólico e o imaginário (final)

A revisão historiográfica calcada na análise crítica dos fatos, somada ao rigor metodológico de uma investigação isenta de paixões e não tendenciosa obedece a uma das prioridades da cultura comunicacional: Conhecer o mensageiro para melhor decifrar a mensagem. As sessões de leitura que Lúcia tinha com sua mãe precisam ser consideradas: histórias da vida dos santos e passagens de uma obra muito influente na época, "Missão Alvorada", do padre Manuel Couto, onde se falava do Inferno em termos medievais, com descrições de suplícios e horrores infligidos às almas pecadoras. Foi nesse ambiente que Lúcia daria seus primeiros passos rumo a clausura que viria logo depois, muito provavelmente fortalecida pela sua experiência visionária.

Outro dado importante de implicações diretas com Fátima diz respeito ao contexto político e ideológico daquele período. Portugal vivia um ambiente de intolerância religiosa pelo excessivo anticlericalismo jacobino dos arquitetos da Primeira República, proclamada em outubro de 1910. Além disso, havia muita incerteza e temia-se pela vida dos jovens soldados portugueses em combate na França. Para os líderes republicanos, os acontecimentos da Cova da Iria eram entendidos como atos de exploração da crendice popular pelas forças antirepublicanas e monárquicas revanchistas. Note-se que Portugal tinha 75% de população analfabeta, vulnerável a rumores, superstições, crendices e toda sorte de imposições culturais.

Nesse intrincado cenário político e social, as aparições ocorreram no mesmo momento em que a Nova República assumia o poder e estreitava suas relações com a Igreja. Portanto, eram "bem vindas", pois sedimentavam a hierarquia católica e se integravam à ancestral tradição mariana ancorada no imaginário mítico português. Em 1863 seria construído o santuário do Sameiro, ainda sem o estrépito das peregrinações fatimistas. Para consolidar essa "união mística" entre a Coroa e a Igreja Católica, em 26 de março de 1646, por requerimento de D. João IV, Nossa Senhora de Fátima foi consagrada Padroeira de Portugal.

Em 1929 o Papa Pio XI realiza a benção de uma estátua da Virgem de Fátima, em Roma, ratificando a validade do culto relativo às aparições. Em 2017, o Papa Francisco, em sua visita ao Santuário, promulga a canonização dos dois primos de Lúcia, Jacinta e Francisco, falecidos em 1919 e 1920. Um conveniente jogo de cena de grande apelo popular. Irmã Lúcia entrou para o claustro aos 14 anos e lá viveu até a sua morte, em 2005. Como Fátima já não era suficiente para sustentar suas débeis crenças, ela alegou ter tido novas visões da Virgem e de Jesus, entre outras entidades celestes (esse grifo é meu). Quanto às alegadas "mensagens", estas poderão ser comentadas em outro momento, tendo por base os trabalho de Fernandes e outros autores.

Pelo conjunto de aspectos aqui sumariamente apresentados, pelos estudos de largo espectro conduzidos por especialistas de diversas áreas e pelas reflexões de cunho filosófico, sociológico, cultural, histórico e psicológico de anos, Fátima se apresenta como um fenômeno emblemático muito além da marianofania. Como diz o próprio Fernandes, Um património imaterial e um fundo cultural ancestral da nossa matriz genética enquanto comunidade e mantêm vivas e persistentes as expressões de um pensamento mágico e da sua estrutura mítica profunda.

E aqui retomo a menção rápida do primeiro post de que nos encontramos diante de um quadro emoldurado pelas instâncias do real, do simbólico e do imaginário, que se tocam e, em certa medida, combinam-se num caldo de discussões multidimensionais. Acho que, neste caso, não preciso me estender em explanações sobre um e outro e outro porque seria afrontar a sua capacidade de apreensão. Já sou grato por saber que esta síntese tenha sido aprovada pelo autor do artigo.

São as palavras finais do amigo historiador que revelam as tintas originais desse moderno palimpsesto: A Igreja Católica acabou por se apropriar dos fenómenos de Fátima, talvez a única instituição no tempo capaz de o fazer, dado o desinteresse e incapacidade da ciência da época. Lúcia, qual donzela sacrificada a deuses ancestrais, foi encerrada e silenciada para que outra Fátima surgisse, mais lógica, mais integrada nos cânones católicos. Lúcia e os primos foram eles e também as suas circunstâncias, os seus limites e possibilidades, como lembra o cardeal Josef Ratzinger, o Papa emérito Bento XVI. Prisioneiros do nosso espaço-tempo e da nossa cultura, ponderamos aqui hipóteses interpretativas que não se coadunam com as necessidades dos crentes que repelem o uso da razão em matérias de fé. Mas, por força das nossas limitações humanas, cada um é livre de acreditar naquilo em que quer acreditar.

Somos tentados a ver na história de Fátima, na versão popular católica e do maravilhoso cristão, uma réplica das narrativas do “país das maravilhas”, o “mundo de Oz”, – ou mesmo o mundo das fadas e das mouras encantadas tão presentes nos nossos arquétipos míticos – onde irrompem as mais fecundas imagéticas do onírico universal, e onde Lúcia dos Santos faz de Dorothy Gale ou de Alice. O complexo estruturante de Fátima traduz um ponto de chegada, um ponto Ómega onde se fundem longínquas correntes culturais, cujos afluentes participaram da construção do nosso inconsciente coletivo e que definiram a sensibilidade feminina da religião popular portuguesa. Portugal foi sempre um país desde a nascença ligado a mitos estruturais. Um país alimentado por prodígios, profecias e espantos. Mas, como lembra Fernando Pessoa, “o mito é o nada que é tudo”…

Terminamos pelo início, de volta a 1917, quando uma amiga de Lúcia, Joaquina Vieira, perguntou à vidente:

Joaquina- Ó Lúcia, o que é que tu viste?
Lúcia – Vi uma Senhora.
Joaquina – O que é que tu lhe perguntaste?
Lúcia – Perguntei quem era vossemecê.
Joaquina – E o que é que ela te respondeu?
Lúcia – Ela esticou um dedo para cima.

Resta por descobrir o que fica na direção do “dedo esticado” da Senhora sob o céu de Fátima/Cova da Iria. Como avisa Confúcio, não detenhamos o nosso olhar no dedo…

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Para quem quiser saber mais sobre as análises contemporâneas de Fátima, indico os seguintes links:
Artigo original:  https://athena.pt/2017/05/11/116/
Documentário Conversas do Centenário com Joaquim Fernandes e convidados, Porto Canal. Seis episódios, um por mês, até outubro. Os dois primeiros já foram ao ar: http://portocanal.sapo.pt/um_video/pa1CmJJsNRhMNViurNgf/


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