Obras

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sexta-feira, 9 de junho de 2017


A gênese das marianofanias - 1


"Fátima" continua rendendo frutos, no blog e no mundo. Compreensível, por se tratar do seu centenário e por envolver aspectos muito mais que meramente religiosos. Minha intenção inicial era replicar um artigo assinado por Joaquim Fernandes* - "As 'aparições' de Fátima-1917 entre o real e o imaginário", na íntegra. Entretanto, por ser um texto longo, ainda que imperdível, sua divisão em capítulos para encaixá-lo no formato do blog resultaria em 10 capítulos, incorrendo no risco de sua leitura perder continuidade em algum momento. Assim, resolvi condensá-lo, atendo-me aos pontos realmente cruciais para se entender os "bastidores" da história, desse modo reduzindo consideravelmente a série de postagens. Os interessados no artigo original podem acessá-lo no link: https://athena.pt/2017/05/11/116/

Importante ressaltar que este episódio de caráter essencialmente religioso tornou-se um marco na vida de Portugal e do mundo, objeto de estudos para teólogos de todas as matizes e cientistas sociais. Por outro lado, espero que você perceba o vínculo  - não premeditado - com os posts recentes, quando se falou de vazio que não se preenche, palimpsesto, pós-verdade, tempo e linguagem, onde tudo está imbricado nos conceitos do real, do simbólico e do imaginário. Óbvio que este vínculo não é coincidência, nem casual, mas causal e, insisto em dizê-lo, soma da mescla de saberes, do capital crítico, da ausência de derivação de tendências e propósitos em busca da verdade. Vamos ao que interessa.

A “Senhora vestida de branco” tem uma milenar cronologia e, antes de Fátima e de 1917, estão registados alguns milhares de alegadas “aparições” marianas. A tradição ocidental reivindica uma primeira manifestação da Virgem Maria de Nazaré, ainda em vida desta, no dia 12 de Outubro do ano 40 da era cristã, em Saragoça, norte de Espanha, ao apóstolo Tiago, irmão de João Evangelista. Neste caso tratar-se-ia de um fenómeno de bilocação (estar em dois lugares em simultâneo), em que “a Virgem aparece acompanhada de anjos, sentada num trono de luz, circundada por nuvens diáfanas no momento em que Tiago orava”. Daqui nasceria o culto a Nossa Senhora do Pilar, na sequência do habitual pedido de edificação de um templo com aquela inovação.

Impossível não deixar de mencionar a famosa visão de Ezequiel: "Olhei, eis que um vento tempestuoso vindo do norte, e uma grande nuvem com fogo a revolver-se, e resplendor ao redor dela, e no meio disto, uma coisa como metal brilhante que saía do meio do fogo. Do meio desta nuvem saía a semelhança de quatro seres viventes, cuja aparência era esta: tinham a semelhança do homem. Tinham cada um quatro rostos, como também quatro asas (...) Os seres viventes ziguezagueavam como relâmpagos (...) O aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como berilo."  Os adeptos da corrente danikeniana se apressaram em corresponder este e outros episódios visionários à presença de veículos extraterrestres. Por que seria diferente com Fátima? Segundo Fernandes, A crença nas “mariofanias” (aparições de Maria), como sustenta a historiadora francesa Sylvie Barnay, remontaria ao ano 380 da era cristã e proviria sobretudo do Oriente grego com fundamentos ponderosos: é que, na paisagem cultural da Ásia Menor, perdurava de há muito a tradição das deusas-mães, ecos dos cultos da fertilidade e que serviu de fermento à potencial piedade mariana, segundo o teólogo Hans Kung.

O “pai da igreja” Gregório de Nissa (m. 397) é tido como o fundador da crença, introduzindo no ocaso da Antiguidade um modelo de narrativa que se iria desmultiplicar nas torrenciais hagiografias e vidas santificadas nos séculos vindouros, quando contaminou toda a Idade Média europeia ocidental. Das geografias orientais, entretanto tomadas pela cristandade imperial ortodoxa, a crença mariana emerge mais tarde no Ocidente, já no século IX, atingindo um primeiro fulgor no século XII, com o decisivo contributo do monge cisterciense Bernardo de Claraval. A partir daí irrompem, como lembra Jean Delumeau, controversas teológicas marcadas pelo dogma da Imaculada Conceição, cujo lugar na hierarquia celestial do edifício cristão havia sido irreversivelmente marcado pelas decisões do Concílio de Éfeso, no ano 431: Maria, a que concebeu Deus (theotokos) superando “a que concebera Cristo” (christotokos) gerou um enunciado cristológico prenhe de consequências que perduram até hoje.


A figura de Maria de Nazaré foi catapultada pelo Concílio de Éfeso, em 431 d.C. para um patamar de excelência – a Theotokos (mãe de Deus) – abrindo assim uma via para uma hiperdulia (veneração e honra exacerbada pelos crentes) que as outras igrejas cristãs não aceitam.


As chamadas "aparições marianas", como revelações e cultos privados, não fazem parte de nenhum dogma da Igreja Católica. A fé católica romana assenta no dogma da Revelação cristã inscrita nos Evangelhos, como relembrou o cardeal Josef Ratzinger, papa emérito Bento XVI. Face à Palavra, objeto de fé divina, as chamadas “aparições” relevam somente da fé humana e são meras manifestações discutíveis no quadro dogmático reclamado pelos textos canónicos. A Igreja Católica não cauciona “videntes”, mas crentes; reconhece os lugares de peregrinação, mas muito raramente se manifesta sobre a autenticidade das chamadas “aparições”, donde nenhum católico é obrigado a aceitar o fenómeno aparicional mariano como certidão irrefutável de uma presença física ou outra da Virgem Maria.
Num domingo, 13 de Maio de 1917, no interior Portugal conhecido como Cova da Iria, três crianças tiveram sua visão quando pastoreavam ovelhas: Lúcia dos Santos, 10 anos, e seus primos Francisco Marto (9) e Jacinta Marto, de 7 anos. De repente, viram uma explosão de luz, e depois outra, como se fossem relâmpagos, quando notaram uma "mulherzinha muito bonita" rodeada de intenso resplendor. Inquirida pela mãe Maria Rosa, Lúcia descreveu sua visão:
Maria Rosa – Ó Lúcia, ouvi dizer que tinhas visto Nossa Senhora na Cova da Iria?
Lúcia – Quem foi que lho disse?
Maria Rosa – Foi a mãe da Jacinta, a quem a filha contara. É verdade?
Lúcia – Eu nunca disse que era Nossa Senhora, mas uma mulherzinha bonita. E até pedi à Jacinta e ao Francisco que nada dissessem. Não tiveram mão na língua!…
Maria Rosa – Uma mulherzinha?
Lúcia – Sim, mãe.
Maria Rosa – Então diz lá o que foi que te disse essa mulherzinha…
Lúcia – Disse-me que queria que nós fôssemos seis meses a fio, nos dias 13 chegados, e no fim diria quem era e o que queria de nós”.

(continua na próxima semana)

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* Doutor em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, co-fundador do CTEC- Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, na Universidade Fernando Pessoa, Porto e co-autor, com Fina d’Armada, de obras sobre a fenomenologia das “aparições” marianas, como “Fátima nos bastidores do Segredo” (Lisboa, 2002, Âncora Editora). 

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