Obras

Obras

sexta-feira, 2 de junho de 2017


Alien covenant


Semanas atrás fiz um comentário sobre o filme "A Chegada", discorrendo sobre simbolismos, tempo e linguagem. Hoje faço nova incursão no cinema com Alien Covenant, novo filme de Ridley Scott, agora sob outro enfoque. Tomei por base o ótimo artigo da jornalista e escritora Eliane Brum, "Alien, o passageiro perdido de uma nave sem futuro", publicado no jornal El País (21/05/2017). Sutil ironia: sim, o alien somos nós, no extremo da alteridade. Não gostei da estética do filme, mas isso não vem ao caso. O artigo abordando a saga dá volume e densidade ao que você já se acostumou a ler aqui e que é o objeto central do blog.

Como sempre, a ficção científica e suas luvas de pelica a nos revelar verdades que não queremos ver. Ou não vemos de fato. E tome androides, replicantes, sintéticos, cyborgs e artificiais prenunciando um futuro distópico possível pela frente - o do pós humano. Outra revelação perturbadora: o silêncio na solidão, a falta de horizonte, o vácuo exterior, o vazio interior. Vazio que não se preenche.


A aporia está na ponta da linha, na visão de Brum: O erro daquele que foi projetado para não cometer erros aponta que o androide se humaniza. E a tragédia, para os humanos da espaçonave Covenant, é justamente a humanidade do sintético. Ao pensar por si mesmo, ao ser capaz de fazer suas próprias escolhas, David conclui que a humanidade é um erro. A analogia é evidente: o humano, incompleto por não ser "divino", busca divinizar-se, e a tragédia se consuma ao encontrar no criador a imperfeição de sua criatura. Se Frankenstein é nossa angústia - somos feitos com "pedaços" de outros, e Davi (o de Michelangelo) o sonho da perfeição, David (o androide) é o quase humano, incompleto, inseguro, vingativo, ressentido. 

Para a escritora, ao criar Alien, Ridley Scott é, Como boa parte da população atual, um humano do século 20 que chega ao 21 mergulhado num presente que é, ele em si, uma distopia. Mas uma distopia em que as referências já não dão conta. Busca-se desesperadamente nossos mitos fundadores, recicla-se os personagens arquetípicos e reedita-se as tragédias clássicas, mas já são oráculos sem respostas porque nós, que os interrogamos, estamos condenados ao presente. Já não há nem mesmo como contar com o espaço como fuga. A Terra se assemelha cada vez mais a uma nave superpovoada e avariada demais, da qual não há como sair. Ou, como ela define em outro artigo¹, A última utopia do presente é uma ilha vulcânica. Nosso presente é tão impactado pelo futuro que somos capazes de imaginar quanto pelo passado que tentamos compreender. Brum inverte o sentido doo tempo sem ferir a lógica!

Nada muito diferente do que você tem lido aqui e, muito provavelmente, em outros lugares. Nada muito diferente do que você, muito provavelmente, pauta em suas mais metafísicas reflexões. E, assim, giramos todos em falso. E o filme de Ridley Scott gira também em falso. Paralisados pela impossibilidade de imaginar um futuro, qualquer futuro, já não conseguimos dialogar com nossos mitos como antes. É este o vazio que, contrariando a lógica, não se preenche. Não a falta que produz movimento de busca, mas o vazio paralisante. O silêncio paralisante. O medo paralisante. 

A nave já não é a caravela que nos leva ao novo mundo – ou ao paraíso perdido. A nave é o presente onde estamos confinados. Nos brancos corredores claustrofóbicos viajamos com a destruição que carregamos. Alien, este estrangeiro íntimo feito da matéria dos sonhos, é o conto de fadas para adultos que dialoga com nossos medos mais profundos e inconfessáveis. Feito da matéria dos sonhos, ele só pode ser vislumbrado. Não é todo filho um alienígena enquanto se engendra nos interiores da mãe?

Nosso presente atualiza o passado, que reescreve o futuro, que ressignifica o presente. O futuro é um presente expandido. O tempo reconstitui o homem que reconfigura o mundo. As peças vão se encaixando. Precisamos muito de uma paleontologia dos fósseis do amanhã. Ou de uma psicanálise dos traumas futuros. A ficção é o cadinho, o alien o elemento. A alquimia é sua.



___________
¹ "O amanhã não pode ser apenas inverno". El País, 09/11/2016.
Alice Fátima Martins, Saudades do Futuro: o cinema de ficção científica como expressão do imaginário social e do devir.  Ed. UnB, 2013.
Ieda Tucherman, A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo
www.comciencia.br/reportagens/2004/10/09.html. 
_______. O pós-humano e sua narrativa. Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia, 1:02, p. 105-124, 2003.
Mark Rowlands, Scifi=Scifilo: A filosofia explicada pelos filmes de ficção científica. Relume Dumará, 2005.
Izaura Rocha.The Happening. Terror pós-moderno e alegoria da alteridade como fonte de tensão e conflito.”  Boletim On-line de Ciências da Comunicação. U.FJF, 2009.

Jean-Bruno Renard. Religion, Science-fiction et extraterrestres. Archives de Sciences Sociales des Religions. 50:1; pp. 143-164. 1980.

Um comentário:

  1. Outra revelação perturbadora: o silêncio na solidão, a falta de horizonte, o vácuo exterior, o vazio interior. Vazio que não se preenche.

    É essa constatação a responsável pelo consumo que fazemos de uma ampla gama de picaretagens, de religião à política. Abraço, sr. Reis.

    ResponderExcluir