Obras

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sexta-feira, 16 de junho de 2017


BASTIDORES


António da Silva (irmão da mãe de Jacinta) – Se os cachopos viram uma mulher vestida de branco, quem poderia ser se não Nossa Senhora?!

Aquela “espécie de boneca muito bonita”, como também a descreveu Lúcia, não se identificara, mas a pequena Jacinta antecipara tratar-se de Maria da Nazaré, mãe de Jesus Cristo. Talvez por influência do tio para quem a alegada “Senhora” só poderia ser a Nossa Senhora que ascendera aos céus há quase 2 mil anos…

As aparições seguiram-se por seis meses, "testemunhadas" por milhares de pessoas a cada vez sempre num clima de máxima comoção, além de vendedores ambulantes munidos de folhetos com imagens da Virgem Maria, retratos das três crianças e penduricalhos. Escreve Fernandes: Um imparável rumor ultrapassava já toda a prudência e dispensava os inquéritos por parte dos responsáveis clericais. A força da religiosidade popular, de um povo angustiado pela guerra e ávido de sobrenatural tornara-se um indomável terramoto. E é Joaquim quem faz as perguntas:

A "mulherzinha bonita vestida de branco" seria mesmo a própria Maria de Nazaré? Obviamente que não. Manifestação sofisticada de uma inteligência ou realidade desconhecida? Também não. Uma "visão interior" como sugerida por Bento XVI, ou apenas uma recorrente fantasia infantil? Não tenho dúvidas de que se trata desta última. A situação fugiu do controle a tal ponto que Lúcia jamais negaria o ocorrido, como nunca fez e nem poderia. Ela não desmentiria sua versão dada a rígida disciplina religiosa familiar, a pressão dos clérigos locais e mais ainda pela temência à autoridade divina.

A convicção dos crentes sobre a manifestação de Maria permaneceu indestrutível até 1978, quando Fina D'Armada, uma pesquisadora laica, teve acesso aos arquivos do santuário de Fátima. Pela primeira vez, os documentos estavam sob um olhar fora da Igreja. Como relata Joaquim, Esta investigação foi vertida, em 1982, no livro “Intervenção Extraterrestre em Fátima”¹, que enunciava dados inéditos ou omitidos, hipóteses e leituras inéditas e “chocantes”, com base na reanálise dos inquéritos originais de 1917 e de 1923, amparada na leitura exaustiva e comparada da bibliografia da época, mormente fontes primárias com cerca de uma centena de testemunhos primários e pessoais. 

O próximo comentário me soa contundente e, em certo sentido, mortal para os incuráveis "marianofanáricos": Ainda hoje, o conceito de “extraterrestre” – invocado para os fenómenos de Fátima num amplíssimo espetro de sinónimos e possibilidades de natureza física e astrofísica – teima em ser tendenciosamente traduzido, de forma caricatural, pelo estereótipo do “marciano” e do disco voador do imaginário espacial da década de 1950! Arcaísmos insidiosos que intentam a ridicularização da hipótese proposta.



Fina d’Armada, em Fátima entrevistando João Marto, amigo de infância de Lúcia.

São muitas as contradições, os desvios e as omissões nos relatos dos pequenos protagonistas no transcurso do processo de reconstrução doutrinal em torno das “aparições”, que as “Memórias” tardias da Irmã Lúcia coram de forma notória. A "bela mulherzinha" se torna a "Virgem Maria", uma "bola de luz" que as poucos se transforma em "Coração" e mais tarde no "Coração Imaculado de Maria". A narrativa auroral e espontânea foi sendo interpretada, retocada e ajustada às conveniências paroquiais e políticas, como as do pároco de Fátima, Manuel Marques, nos primeiros interrogatórios.

A partir das descrições iniciais das crianças e das entrevistas originais feitas por Fina D'Armada, ainda que fortemente influenciadas pelo tônus clerical da época, foi possível estabelecer um “retrato” do episódio, conforme Fernandes: Uma figura feminina, muito bela, de olhos negros, envolvida por uma luz que cegava. Tinha cerca de 1 metro e 10 de altura e aparentava uma idade entre os 12 e os 15 anos. Vestia uma saia travada, branca e dourada, aos cordõezinhos de cima a baixo e atravessados. Um manto tipo capa que descia até à orla do vestido que não ultrapassava os joelhos. Trazia algo na cabeça que lhe cobria as orelhas e os cabelos. Pendia-lhe do pescoço um cordão com uma bola luminosa à altura da cintura. Não tinha movimentos faciais nem mexia os lábios quando “falava” nem os membros inferiores quando se afastava de costas voltadas em direção ao alto…

Seguindo a cronologia e genealogia do fenômeno, tem-se que: 

1 - Em datas não determinadas, de 1915 e 1916, Lúcia afirma ter tido visões de um “anjo”, figura a que chamou “estátua de neve” transparente ou ainda uma “pessoa embrulhada num lençol”;
2 - Em 13 de maio, os três pastorinhos assumem-se intermediários de uma “senhora vestida de branco”, que desce sobre uma pequena azinheira. Questionam-na sobre alguns doentes e o destino dos soldados portugueses enviados para as trincheiras de França;
3 - Em 13 de Julho ocorre a transmissão de um “segredo” pela mesma entidade aos pequenos videntes e promessa de um milagre para Outubro seguinte, com pedidos de orações, penitência e conversões. O tema da Grande Guerra sobressai nas mensagens alegadamente recebidas por Lúcia.
4 - Em 13 de Outubro a visitante sugere a edificação de um templo dedicado a Nossa Senhora do Rosário, ou identificando-se como tal (dúvidas de Lúcia) – garantindo que a Grande Guerra acabaria naquele mesmo dia. O que não sucedeu. O sangrento conflito só terminaria em Novembro de 1918, com cerca de 10 mil mortos portugueses.

(Encerra na próxima semana)
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¹ Ed. Bertrand


Um comentário:

  1. O terceiro segredo de Fátima: que toda a história não passa de estória! Abraço, sr. Reis.

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