Obras

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sexta-feira, 29 de setembro de 2017


CIÊNCIA. RAZÃO E SENSIBILIDADE


Após ter encerrado a série sobre reencarnação, espiritismo e vida após a morte, além de um quarto texto complementar, um amigo veio com um argumento padrão, em nada diferente de outros de mesma natureza. Cheguei a comentar rapidamente em A presença da ausência: a irrefutabilidade do testemunho, mas ele insistiu nessa tese. É um erro primário, infantil até, achar que o relato de uma dada experiência - ou a própria - seja prova suficiente da sua realidade. Fique claro que não se discute a credibilidade da testemunha. A questão é outra, muita atenção nisso.

Imagine se eu acreditasse nos relatos daqueles que alegam terem visto discos voadores, encontrado alienígenas, entrado nas naves, viajado espaço afora,  visto um fantasma na sala, conversado com fadas, sem ter feito um exaustivo exame, sem ter consultado o histórico e a literatura, sem considerar outras explicações, sem ponderar longamente sobre a possibilidade da existência real dos objetos e sem ouvir especialistas?! Certamente eu iria me sentir um idiota, um crédulo ingênuo. Não é assim que funciona, e o mesmo raciocínio se aplica a todos os demais eventos que exijam investigação, conhecimento, diálogo e intercâmbio com outras fontes.

Meu interlocutor afirma peremptoriamente que suas vivências no espiritismo lhe asseguram a realidade do fenômeno; um amigo jura por todos os santos que um disco voador sobrevoou sua casa; outra amiga tem seus motivos para crer que em vida anterior ela foi uma cidadã austríaca. Um experiente piloto civil afirma convictamente ter sido acompanhado em voo por um objeto luminoso. Se depender dos personagens, crédito total, mas só a palavra basta? Não, de forma alguma. Ao pesquisador cabe dissecar, não ficar empilhando ossos. Uma coisa é certa, os depoentes repelirão vigorosamente as conclusões das investigações se estas frustrarem suas expectativas, seus desejos e suas necessidades. Sei disso muito bem. Alimentar-se de explicações simplistas e prontas é alívio para mentes assombradas. Quando você não consegue explicar uma coisa, o problema não está na coisa, mas em você, no pouco ou conhecimento nenhum que tem sobre ela. 


Como diabos o mágico tirou o coelho de cartola vazia? 

A atitude mais lúcida sempre é se pautar por algumas chaves: senso crítico, lógica, cautela, disciplina e ética, e obedecer a um só princípio: Análise. Examinar com precisão cada detalhe, cada instância e cada circunstância, ponderar, contrapor, e a razão para isso também é uma só: Não se pode confiar que relatos dessa ou de qualquer outra ordem, independente da autoria, sirvam como elemento probatório de sua veracidade enquanto não se esgotar um minucioso inquérito. Indício não é sinônimo de evidência. Não é possível obter uma resposta mínima e razoavelmente satisfatória se não for feito um rigoroso estudo. Por que é tão difícil entender isso? Só porque contraria 'certezas' estabelecidas? E o espírito crítico, como fica? Os sectários, no entanto, se aferram às suas experiências e não admitem nem ousam pensar o contrário. É a famigerada zona de conforto da qual não abrem mão, zona que começo a chamar de cinzenta. Ou sombria. Ou escura mesmo.

Reitero, e desculpe a insistência, mas a vida só pode ser tecida pela decência e seriedade se assentada na lógica, mo racional, ma prudência e, sobretudo, na ética. Inclua-se, também, razão e sensibilidade. Fora dessas balizas tudo é ingenuidade, desordem, insciência, negligência, analfabetismo funcional, absolutismo e vigarice. Para Morin, estamos vivendo um momento histórico em que os desenvolvimentos técnicos, científicos e sociológicos são múltiplos e cada vez mais estreitamente interrelacionados. Atenção agora para essa fala: "Vemos que o próprio progresso do conhecimento científico exige que o observador se inclua em sua observação, ou seja, que o sujeito se reintroduza de forma autocrítica e autorreflexiva em seu conhecimento dos objetos". Entendeu? Ele é loquaz ao afirmar que estamos vivendo a aurora de um grande e profundo esforço que requer novos investimentos intelectuais que permitam prover meios de autorreflexibilidade e auto-integração da atividade científica. Não é pouca coisa, não é para fracos e acomodados, é um processo lento, longo, difícil, que demanda persistência, disciplina e principalmente vontade., virtudes bastante em falta na praça. Seria uma cultura às avessas, talvez uma "culturafobia" em curso?

Imagine o intelecto um músculo: se não exercitá-lo, ele atrofia, fica flácido, perde força e vitalidade. Não mantê-lo em atividade o torna "preguiçoso", se contentando com o básico, com o que está à mão, não questiona, não duvida. Responda, você é pensante ou errante? Uma rosa só floresce plenamente se sob a luz. Você também! Quem sabe a lápide de Kant te diga algo: "Duas coisas me enchem a alma de admiração e respeito quanto mais frequentemente o pensamento delas se ocupa - o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim". Razão e sensibilidade é isso.

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Edgar Morim, Ciência com Consciência.  Bertrand Brasil, 2005.
Harold Bloom, Presságios do Milênio: Anjos, sonhos e imortalidade. Objetiva, 1996.
John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano. Martins Fontes, 2012.

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