Obras

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sexta-feira, 1 de setembro de 2017


A TAVESSIA NO TEMPO

Desviando um pouco do roteiro habitual deste blog, a conversa que vamos ter a partir de hoje e nas próximas semanas é bem delicada, pois mexe direta e profundamente com convicções enraizadas na alma. Os amigos que pedem minha opinião a respeito sabem que ela está embasada em anos de estudos e reflexões. Na verdade, não é um tema só, mas três: reencarnação, espiritismo e vida após a morte, que se enroscam e se fundem, sendo difícil distinguir onde acaba um e começa outro. A reboque, vem a tal "terapia de vidas passadas", uma indigência moral e indecência ética que me abstenho de comentar.

Procurei não ser repetitivo, mas foi inevitável tocar em pontos onipresentes aqui, o último deles em Vazio que não se preenche. Tenho evitado seguir a trilha poeirenta do 'senso comum' porque ela leva sempre à modorrenta zona de conforto da acomodação e do conformismo. Há muito caiu por terra a concepção errônea de que só utilizamos 10% do nosso cérebro, querendo com isso dizer que não temos capacidade de apreender certos "mistérios". Não há como determinar a fração de algo quando não se pode mensurá-lo todo. Essa é uma típica lenda urbana formulaica. A nossa mente ainda tem muito a revelar e a neurociência projeta e promete descobertas surpreendentes.

Muitos dizem "não mexa com coisas sérias que não conhece". Errado, de novo, é justamente aí que devemos ir fundo, escarafunchar, demolir falsas ideias, desfazer mitos e derrubar tabus. Por outro lado, como onde há luz há sombra, ainda somos muito primitivos, limitados, covardes, e nos deixamos banhar nas águas da ignorância por preguiça. Ou medo. Então, fundamos religiões e templos, elegemos oráculos e deuses, criamos ritos, superstições, lendas, fábulas. Se o desconhecido é desconhecido só porque é desconhecido, deixemo-lo assim? excesso de respeito pelo sobrenatural, pelo desconhecido ou "transcendente"é porta de entrada para o medo, que bloqueia o intelecto e o torna covarde. Se as mentes mais brilhantes não ousassem pensar muito além do simples, se não dessem o passo para fora da caverna, ainda estaríamos venerando totens e divindades telúricas. Muitos ainda estão.

De modo geral, a base da reencarnação fala de espíritos aguardando (ou não), em "outro plano", a vez de retornar ao mundo dos vivos para prosseguir na sua escala evolutiva. No Brasil, essa doutrina, e mais ainda o espiritismo, perdura por razões culturais e emocionais, mas no resto do mundo, inclusive na França, seu berço, ficou restrita a um esquálido número de persistentes adeptos. Não vou discorrer sobre psicografia, psicopictografia, psico isso psico aquilo, obsessão, incorporação, mediunidade, que pertencem ao campo da parapsicologia e sob estudo principalmente das áreas de Saúde Mental, Psicologia e Psiquiatria.

O eixo central por onde gravitam crenças, paixões e esperanças  - palavra forte nesse contexto - está no olhar inescapável sobre a finitude da vida. A travessia existencial é uma lenta e silenciosa agonia que acorrenta e atormenta esse moderno, triste e pobre Prometeu. Pode-se dizer que essa é a síntese consensual entre os mais profundos pensadores, e começo por Schopenhauer, filósofo polonês do século 19 (1788-1860), por onde iniciamos nossas reflexões: O animal vive sem o conhecimento verdadeiro da morte, por isso o animal indivíduo goza de todo caráter imperecível da espécie, na medida em que só se conhece como infinito. Com a razão aparece, necessariamente, entre os homens, a certeza assustadora da morte. Os aspectos envolvidos nessa "tríade una" trazida aqui se movem por vários campos - religião, cultura, história, biologia, psicologia, metafísica, mística e mitos. Dizendo de outro modo, é a busca obstinada de sentido para a vida que faz o homem ir atrás de sua perpetuidade, de ocupar o vazio que não se preenche. Para ele, a vida precisa ter um sentido.

É esse o tom de Heidegger, filósofo alemão contemporâneo (1889-1976): A angústia é uma característica fundamental da existência humana. Quando o homem desperta para a consciência da vida, percebe que ela não tem sentido ou finalidade. É uma sombra que paira sobre todas as coisas. É o nada que tudo aniquila e que está por sobre e além de nós. Tudo caminha para o ocaso e decadência. Tudo termina no nada, e não há palavras que possam expressar o nada que sentimos. Não só é muito difícil admitir tudo isso, como é doloroso, desagradável e causa muito desconforto, talvez até um trauma, um choque, reconsiderar conceitos condicionantes e combater os dragões negros e cegos guardiães da resistência, aquartelados  nas lacunas do espírito.

Ao tomar consciência desse fato inexorável, o intelecto se fragiliza, mente para si mesmo, o que Becker chama de "mentira caracterológica" ou mentira vital: O homem tem uma identidade simbólica que o destaca nitidamente da natureza. Ele é um eu simbólico, uma criatura com um nome, uma história de vida. É um criador com uma mente que voa alto para especular sobre o átomo e o infinito, que com imaginação pode colocar-se em um ponto no espaço e, extasiado, contemplar o seu próprio planeta. Essa imensa expansão, essa sagacidade, essa capacidade de abstração, essa consciência de si mesmo dão ao homem a posição de um pequeno deus na natureza. É essa mentira que 'sustenta' a existência humana. O homem quer ser imortal como os deuses, mas "esquece" que essencialmente é um animal como qualquer outro, um cavalo selvagem domesticado, mas sempre um cavalo.

Por tudo isso, ele anseia pela sua significância cósmica. Em uma palavra, narcisismo. Integrar-se ao universo 'infinito' é uma forma de continuar 'existindo', de imortalidade, ainda que simbólica. No entanto, esse mesmo narcisismo capacita-o para o recalque da ideia da morte, pois nos seus recessos orgânicos mais íntimos, ele se sente imortal, diz Becker novamente. E há uma luta interna invisível, titânica, consumindo toneladas de energia psíquica, para que as estruturas internas do indivíduo não deixem vir à sua consciência a ideia da morte, uma espécie de negociação permanente com o inconsciente para que ele deixe a consciência fora desse diálogo. Ou é assim ou, dirá Nietzsche, "a angústia de acompanhará". Bem, de qualquer jeito, a angústia será sua parceira constante, ela é parte da sua vida, ou seja, só acaba quando finda a vida. Para Ortega y Gasset (1883-1955), a verdadeira condição do homem é a de um náufrago, o que explica muita coisa. Ou tudo. 

Sartre, por sua vez, diz que o sujeito deve ser responsável por si: O homem não é passível de uma definição porque, de início, ele não é nada, só depois será alguma cisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Para ele, o sentido da existência humana é o seu compromisso com a história. Você acha que é fácil lidar com o assunto e que explicações simplórias bastam? O exame se divide em camadas e em diversos níveis de complexidade. Perceba que são duas narrativas aparentemente distintas: a da perenidade do espírito e a da solidão cósmica, es eu incluiria uma terceira - a da solidão do homem consigo mesmo.

Para fechar esta introdução mais que necessária, duas observações: Você deve ter percebido os mecanismos compensatórios (e em certa medida, recompensatórios) que o homem articula - consciente ou inconscientemente - para blindá-lo de seus medos, sua covardia, sua incompletude - as tais muletas metafísicas. Falo disso o tempo todo. De qualquer forma, aqui todas as opiniões, vivências e convicções individuais são respeitadas. No lugar de polêmica, proponho pensar a partir da análise crítica dos argumentos. Você pode discordar de tudo, mas não do peso da fundamentação e dos autores e a larga experiência de cada um, por isso a bibliografia conduz a um conhecimento mais amplo. Semana que vem continuamos.



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Ernest Becker, A Negação da Morte. Record, 2008.
Arthur Schopenhauer, Metafísica do Amor. Metafísica da Morte. Martins Fontes, 2008. 
Gaston Bachelard, A Formação do Espírito Crítico. Contraponto, 1996.
José M. de Carvalho, O Motivo Edênico no Imaginário Social Brasileiro. Rev. Brasileira de Ciências Sociais, 3:38, 1998.
Françoise Dastur, A Morte. Ensaios sobre a finitude. Difel, 2002.
Aniela Jaffé, A Morte à Luz da Psicologia. Cultrix, 1995.
Edgar Morin, O Homem e a Morte. Imago, 1997.
Martin Heidegger, O que é Metafísica. Nova Fronteira, 1996.
Jean-Paul Sarte, O Ser e o Nada - Ensaio de ontologia fenomenológica. Vozes, 2005.
José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas. Ruriak, 2013.
Soren Kierkegaard, O Conceito de Angústia. Vozes, 2013

Um comentário:

  1. Que esgrimista impiedoso! Seu estilo é claro, franco, direto e reto - linear, senhor Reis! Outro texto deveras inspirador. Abraço.

    "Depois de morrer, você vai ser o que você era antes de seu nascimento".
    Arthur Schopenhauer.

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