Desviando um
pouco do roteiro habitual deste blog, a conversa que vamos ter a partir de hoje
e nas próximas semanas é bem delicada, pois mexe direta e profundamente com
convicções enraizadas na alma. Os amigos que pedem minha opinião a respeito sabem que ela está embasada em anos de estudos e reflexões. Na verdade, não é um tema só, mas três:
reencarnação, espiritismo e vida após a morte, que se enroscam e se fundem,
sendo difícil distinguir onde acaba um e começa outro. A reboque, vem a tal
"terapia de vidas passadas", uma indigência moral e indecência ética que me abstenho de comentar.
Procurei não ser
repetitivo, mas foi inevitável tocar em pontos onipresentes aqui, o último
deles em Vazio
que não se preenche. Tenho evitado seguir a trilha poeirenta do 'senso
comum' porque ela leva sempre à modorrenta zona de conforto da acomodação e do
conformismo. Há muito caiu por terra a concepção errônea de que só utilizamos
10% do nosso cérebro, querendo com isso dizer que não temos capacidade de
apreender certos "mistérios". Não há como determinar a fração de algo
quando não se pode mensurá-lo todo. Essa é uma típica lenda urbana formulaica. A nossa mente ainda tem muito a revelar e a
neurociência projeta e promete descobertas surpreendentes.
Muitos dizem
"não mexa com coisas sérias que não conhece". Errado, de novo, é
justamente aí que devemos ir fundo, escarafunchar, demolir falsas ideias,
desfazer mitos e derrubar tabus. Por outro lado, como onde há luz há sombra,
ainda somos muito primitivos, limitados, covardes, e nos deixamos banhar nas
águas da ignorância por preguiça. Ou medo. Então, fundamos religiões e templos,
elegemos oráculos e deuses, criamos ritos, superstições, lendas, fábulas. Se o
desconhecido é desconhecido só porque é desconhecido, deixemo-lo assim? O excesso de respeito pelo sobrenatural, pelo desconhecido ou "transcendente"é porta de entrada para o medo, que bloqueia o intelecto e o torna covarde. Se as
mentes mais brilhantes não ousassem pensar muito além do simples, se não dessem o passo para fora da caverna, ainda estaríamos venerando totens e divindades telúricas. Muitos ainda estão.
De modo geral, a
base da reencarnação fala de espíritos aguardando (ou não), em "outro
plano", a vez de retornar ao mundo dos vivos para prosseguir na sua escala
evolutiva. No Brasil, essa doutrina, e mais ainda o espiritismo, perdura por
razões culturais e emocionais, mas no resto do mundo, inclusive na França, seu
berço, ficou restrita a um esquálido número de persistentes adeptos. Não vou
discorrer sobre psicografia, psicopictografia, psico isso psico aquilo,
obsessão, incorporação, mediunidade, que pertencem ao campo da parapsicologia e
sob estudo principalmente das áreas de Saúde Mental, Psicologia e Psiquiatria.
O
eixo central por onde gravitam crenças, paixões e esperanças - palavra
forte nesse contexto - está no olhar inescapável sobre a finitude da vida. A
travessia existencial é uma lenta e silenciosa agonia que acorrenta e atormenta
esse moderno, triste e pobre Prometeu. Pode-se dizer que essa é a síntese
consensual entre os mais profundos pensadores, e começo por Schopenhauer,
filósofo polonês do século 19 (1788-1860), por onde iniciamos nossas reflexões: O animal vive sem o conhecimento
verdadeiro da morte, por isso o animal indivíduo goza de todo caráter
imperecível da espécie, na medida em que só se conhece como infinito. Com a
razão aparece, necessariamente, entre os homens, a certeza assustadora da morte.
Os aspectos envolvidos nessa "tríade una" trazida aqui se movem por
vários campos - religião, cultura, história, biologia, psicologia, metafísica,
mística e mitos. Dizendo de outro modo, é a busca obstinada de sentido para a
vida que faz o homem ir atrás de sua perpetuidade, de ocupar o vazio que não se
preenche. Para ele, a vida precisa ter
um sentido.
É esse o tom de
Heidegger, filósofo alemão contemporâneo (1889-1976): A angústia é uma característica
fundamental da existência humana. Quando o homem desperta para a consciência da
vida, percebe que ela não tem sentido ou finalidade. É uma sombra que paira
sobre todas as coisas. É o nada que tudo aniquila e que está por sobre e além
de nós. Tudo caminha para o ocaso e decadência. Tudo termina no nada, e não há
palavras que possam expressar o nada que sentimos. Não só é muito difícil admitir tudo isso, como é doloroso, desagradável e causa muito desconforto, talvez até um trauma, um choque, reconsiderar conceitos condicionantes e combater os dragões negros e cegos guardiães da resistência, aquartelados nas lacunas do espírito.
Ao tomar consciência desse fato inexorável, o intelecto se fragiliza, mente para si mesmo, o que Becker chama de "mentira caracterológica" ou mentira vital: O homem tem uma identidade simbólica que o destaca nitidamente da natureza. Ele é um eu simbólico, uma criatura com um nome, uma história de vida. É um criador com uma mente que voa alto para especular sobre o átomo e o infinito, que com imaginação pode colocar-se em um ponto no espaço e, extasiado, contemplar o seu próprio planeta. Essa imensa expansão, essa sagacidade, essa capacidade de abstração, essa consciência de si mesmo dão ao homem a posição de um pequeno deus na natureza. É essa mentira que 'sustenta' a existência humana. O homem quer ser imortal como os deuses, mas "esquece" que essencialmente é um animal como qualquer outro, um cavalo selvagem domesticado, mas sempre um cavalo.
Ao tomar consciência desse fato inexorável, o intelecto se fragiliza, mente para si mesmo, o que Becker chama de "mentira caracterológica" ou mentira vital: O homem tem uma identidade simbólica que o destaca nitidamente da natureza. Ele é um eu simbólico, uma criatura com um nome, uma história de vida. É um criador com uma mente que voa alto para especular sobre o átomo e o infinito, que com imaginação pode colocar-se em um ponto no espaço e, extasiado, contemplar o seu próprio planeta. Essa imensa expansão, essa sagacidade, essa capacidade de abstração, essa consciência de si mesmo dão ao homem a posição de um pequeno deus na natureza. É essa mentira que 'sustenta' a existência humana. O homem quer ser imortal como os deuses, mas "esquece" que essencialmente é um animal como qualquer outro, um cavalo selvagem domesticado, mas sempre um cavalo.
Por tudo isso,
ele anseia pela sua significância cósmica. Em uma palavra, narcisismo.
Integrar-se ao universo 'infinito' é uma forma de continuar 'existindo', de
imortalidade, ainda que simbólica. No entanto, esse mesmo narcisismo capacita-o
para o recalque da ideia da morte, pois nos
seus recessos orgânicos mais íntimos, ele se sente imortal, diz Becker novamente. E há uma
luta interna invisível, titânica, consumindo toneladas de energia psíquica,
para que as estruturas internas do indivíduo não deixem vir à sua consciência a
ideia da morte, uma espécie de negociação permanente com o inconsciente para
que ele deixe a consciência fora desse diálogo. Ou é assim ou, dirá
Nietzsche, "a angústia de acompanhará". Bem, de qualquer jeito, a
angústia será sua parceira constante, ela é parte da sua vida, ou seja, só acaba quando finda a vida. Para Ortega
y Gasset (1883-1955), a verdadeira condição do homem é a de um náufrago, o que
explica muita coisa. Ou tudo.
Sartre, por sua
vez, diz que o sujeito deve ser responsável por
si: O homem não é passível de
uma definição porque, de início, ele não é nada, só depois será alguma cisa e
será aquilo que ele fizer de si mesmo. Para
ele, o sentido da existência humana é o seu compromisso com a história. Você
acha que é fácil lidar com o assunto e que explicações simplórias bastam? O exame se divide em camadas e em diversos níveis de complexidade. Perceba que são duas narrativas aparentemente distintas: a
da perenidade do espírito e a da solidão cósmica, es eu incluiria uma terceira
- a da solidão do homem consigo mesmo.
Para fechar esta
introdução mais que necessária, duas observações: Você deve ter percebido os
mecanismos compensatórios (e em certa medida, recompensatórios) que o homem articula - consciente ou
inconscientemente - para blindá-lo de seus medos, sua covardia, sua
incompletude - as tais muletas metafísicas. Falo disso o tempo todo. De
qualquer forma, aqui todas as opiniões, vivências e convicções individuais
são respeitadas. No lugar de polêmica, proponho pensar a partir da análise
crítica dos argumentos. Você pode discordar de tudo, mas não do peso da
fundamentação e dos autores e a larga experiência de cada um, por isso a
bibliografia conduz a um conhecimento mais amplo. Semana que vem continuamos.
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Ernest Becker, A Negação da Morte. Record, 2008.
Arthur Schopenhauer, Metafísica do Amor. Metafísica da Morte. Martins Fontes, 2008.
Gaston Bachelard, A Formação do Espírito Crítico. Contraponto, 1996.
José M. de Carvalho, O Motivo Edênico no Imaginário Social Brasileiro. Rev. Brasileira de Ciências Sociais, 3:38, 1998.
Françoise Dastur, A Morte. Ensaios sobre a finitude. Difel, 2002.
Aniela Jaffé, A Morte à Luz da Psicologia. Cultrix, 1995.
Edgar Morin, O Homem e a Morte. Imago, 1997.
Martin Heidegger, O que é Metafísica. Nova Fronteira, 1996.
Jean-Paul Sarte, O Ser e o Nada - Ensaio de ontologia fenomenológica. Vozes, 2005.
José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas. Ruriak, 2013.
Soren Kierkegaard, O Conceito de Angústia. Vozes, 2013
Martin Heidegger, O que é Metafísica. Nova Fronteira, 1996.
Jean-Paul Sarte, O Ser e o Nada - Ensaio de ontologia fenomenológica. Vozes, 2005.
José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas. Ruriak, 2013.
Soren Kierkegaard, O Conceito de Angústia. Vozes, 2013
Que esgrimista impiedoso! Seu estilo é claro, franco, direto e reto - linear, senhor Reis! Outro texto deveras inspirador. Abraço.
ResponderExcluir"Depois de morrer, você vai ser o que você era antes de seu nascimento".
Arthur Schopenhauer.