Obras

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sexta-feira, 15 de setembro de 2017


INFINITUDE  INTERROMPIDA

Eu poderia ter fechado o post anterior de forma sarcástica: “Elvis vive, em alguém, em algum lugar”. Sarcasmo não é sinônimo de deboche. O que quero saber é por que só pessoas "legais" reencarnam? Não consta da lista de retornados figuras como Dante, Napoleão, Rei Arthur, Tiradentes, Carlota Joaquina, Robespierre, Tocqueville, Platão, Shakespeare, Michelangelo, Cleópatra... Curiosamente, também, ninguém quer ser a reencarnação de um "zé ninguém", de um ilustre desconhecido. Outra questão: Todos os sete bilhões de seres do planeta são reencarnados? Em sentido inverso, todo esse povo irá reencarnar? Como explicar que a população mundial cresce exponencialmente a cada década? A média global anual de mortes é de 40 milhões, e a de nascimento, 90 milhões¹. De onde vem o excedente? Em 2000 éramos seis bilhões, e o bilhão a mais hoje veio de onde, das Plêiades? Se a resposta for não, não são todos que reencarnam, então quem ou o que estabelece o critério - se é que há - para que um espírito retorne e outro permaneça no limbo?

Mais perguntas, tomando o exemplo de Beethoven: O fato de uma criança tocar piano como o músico alemão significa que este reincorporou nela, segundo os defensores da teoria, certo? Mas não são eles a dizer que reencarnação é um "degrau evolutivo" na vida do sujeito? E Beethoven volta como Beethoven de novo? É só o talento que prevalece ou toda a personalidade do gênio, com seus defeitos, humores, manias, cacoetes e virtudes? Por que a criança não fala o idioma do músico? Só o que é "bom" aparece? Os reencarnacionistas têm as respostas ou selecionam as explicações de acordo com suas conveniências e interesses?

É muito comum algumas pessoas alegarem ser a reencarnação de uma enfermeira da Segunda Guerra morta em ação, ou de um médico indiano do século 18 que só atendia pessoas sem recursos por caridade, enfim, gente desse tipo. Heroísmo, solidariedade, benemerência pegam bem, mas ninguém quer ser a reencarnação de Jack, o estripador, do sanguinário conquistador mongol Genghis Kan, do impiedoso Átila, o Huno, de um carrasco ceifador da Inquisição ou de um estuprador, um pedófilo, um criminoso. Não são eles que mais precisariam de remissão? Não, o reencarnado jamais terá vindo dessa escória, mas de alguém 'do bem'. Facínora não tem direito à 'evolução cármica'. Nada disso faz sentido. Nem poderia. Quem não tiver oxigênio para defender sua tese, que não faça, ou vai dar com os burros n'água.

Muito se fala em "autoconhecimento" como forma de "transcender a matéria". Bonito, soa chique, mas o que poucos sabem é que o real conhecimento de si é amargo como fel porque, entre outras coisas, obriga admitir que vive à custa de mentir para si mesmo o tempo todo sobre a vida e a morte, servil a um protetorado imaginado. O indivíduo, desassistido pelos deuses, à mercê de seus flagelos, infortúnios e desgraças, sente o fluir inclemente da sua história, por isso quer e precisa confiar em suas criações, em suas fantasias, mesmo ilusórias, para que elas, em contrapartida, lhes deem a força necessária para suportar essa longa e trágica travessia Não precisaria acreditar, não fosse presa fácil de suas crenças e refém de seus medos, e se não se encantasse tanto com sua realidade imaginária.

A reflexão sobre as diferentes formas do desespero (des-espero - não esperar), da temporalidade - finitude e infinitude relacionadas, respectivamente, ao fator corporal limitante e ao espiritual expansivo e ilimitado da síntese humana, mostra como o indivíduo pode beirar o colapso psíquico caso afirme em excesso ou suprima um de seus polos. Sujeito compósito, bífido, dual, ou, como diz Morin, unidual – dois em um: metade divino, dotado de linguagem, expressão e sentimentos, autoconsciente, metafísico, transcendente, e metade humano, amedrontado, desorientado, condenado à decomposição da carne e ao esquecimento. Baudelaire não suaviza:

Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro,
um granito açoitado por ondas de assombro,
a dormir nos confins de um Saara brumoso.
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
esquecida no mapa, e cujo áspero humor
canta apenas os raios do sol a se pôr.

Diante da certeza da morte, e se à ciência não cabe o papel de Deus, o sujeito moderno opta por negar sua débil condição humana, não sem antes recorrer a modelos exteriores para escorar sua existência. Por que o homem vive essa ansiedade? Por que esse “absurdo” na vida terminal? Por que buscamos um significado para existir e ela parece negar-nos? Não é tanto o “quando?” e o “como?” que aflige a consciência do indivíduo, mas o “por quê?”. Não se engane, não há e não haverá jamais respostas totalizadoras porque às perguntas do homem deus não responde, e às perguntas de deus o homem não tem respostas. 

Tudo isso é mais que um conflito, é uma neurose, uma cisão interna fortemente enlaçada com a questão do próprio tempo, e representa uma tentativa frustrada de resolver dentro de si um problema universal. A vida é apenas uma faísca do tempo cósmico, e é nela que transcorre toda a existência humana. "A vida não é mais que uma fina chuva de verão", afagam os poetas. 

Se o tempo é o tecido das nossas vidas, como dizia Antonio Candido, e se não temos mais tempo para o tempo que deveria ser nosso porque se desfaz antes que possamos senti-lo, buscamos esticá-lo antes que seja tarde, antes que escoe em si próprio. Bergson afirmava que o presente não existe porque ele é a milésima parte da milésima parte de uma dimensão que o passado empurra para frente, ao mesmo tempo em que o futuro apaga, engole. Entende-se então que o passado é apenas memória (passível de nem existir) e o futuro simples ficção (não existe mesmo). A única certeza que esse futuro nos dá é a morte, e o temor disso é passar pela vida “sem ter a experiência de escrever a sua própria rapsódia” (Walter Benjamin).
 

Morin e Becker dialogam sobre o fim: o homem o teme porque faz perder sua individualidade, resultando no "traumatismo da morte"; juntamente com a consciência da morte e a crença na imortalidade, forma o triplo dado - a antropobiologia, o duplo e a morte-renascimento. A consciência realista da morte é traumática em sua própria essência; a consciência traumática da morte é realista da sua própria essência. “Onde o traumatismo ainda não existe, onde o cadáver não está singularizado, a realidade física da morte ainda não está consciente”, diz Morin.

A morte, para o homem, é um não acontecimento - não quer ver nem falar nem ouvir falar; é um esboço sobre cegueira, mudez e surdez. Às exéquias do sujeito morto assistimos ao ensaio geral de nosso próprio funeral. A consciência da morte não é inata, é cultural. Por fim, a crença no renascimento deriva para outra, de concepções mais arcaicas, a manifestação do duplo através do qual o indivíduo pensa assegurar sua vida após a morte, e o caminho mais comum é o do espiritismo e de outros cultos, aos quais Morin denomina “fixação institucionalizada do infantilismo humano diante da morte”. A crença na reencarnação, espíritos e vida eterna faz parte do cipoal metafísico no qual o homem se agarra com fervor para não ser tragado pelo charco movediço da excruciante caminhada no tempo. Há um sentimento consensual entre pensadores de todas as épocas sobre essa fragilidade, essa vacuidade e essa imaturidade do ser perante a dimensão trágica da existência em sua infinita finitude. 
Como escreveu o ensaísta e poeta Lêdo Ivo (1924-2012), "Afinal, o que sobra é a obra, o resto soçobra."

Penso que não foi difícil compreender o cerne da discussão trazida aqui. Nossa inconsistência é fratura exposta, nossa incapacidade em "controlar" o tempo é angustiante. Só percebemos a brevidade da vida quando nossa jornada aproxima-se do ocaso. Quando jovens, não estamos "nem aí" para o tempo, tratando de viver o aqui e agora, quando muito planejando um futuro possível na expectativa de efetivamente vivê-lo, mesmo sem qualquer garantia disso. Se há alguma "garantia" de que vamos viver esse futuro, é aquela que criamos artificialmente para preencher tantas lacunas. Entre estes artifícios está a reencarnação, a crença em 'espíritos evoluídos' que vagam em outras esferas, na vida após a morte, enfim, na continuidade da vida. Claro que tudo é tão mais sutil quanto denso e complexo, mas não espere mergulhos mais profundos agora.

Esse "entre eles" indica que há mais coisas, mais instrumentos "garantidores" dessa pretensa imortalidade, e me perdoe se sou repetitivo, mas preciso sê-lo: Estou falando de anjos, mestres e, mais especificamente, de oráculos (de aliens já falei demais). Por que destaco as práticas divinatórias? Porque, falaciosas, vaticinam um futuro inexistente, imaginado, ilusório, irreal, mentirosamente construído. De modo geral, as pessoas se deixam levar por tais predições desde que lhes sejam favoráveis, mas, se um astrólogo, cartomante ou 'vidente' lhe disser que desgraças estão a caminho ou que sua morte é iminente, a tendência será ouvir uma "segunda opinião". Se esta confirmar aquela, você tocará seus dias com apreensão, procurando, inconscientemente, não levar muito a sério, afinal, são apenas "crendices populares". 




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¹  http://www.worldometers.info/br/
Gaston Bachelar, O Direito de Sonhar. Bertrand Brasil, 1994.
Harold Bloom, Presságios do Milênio: Anjos, sonhos e imortalidade. Objetiva, 1996.
Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna. Cia. de Bolso, 1978.
António R. Damásio, E o Cérebro criou o Homem. Cia. das Letras, 2011.
Émite Durckheim, As Formas Elementares da Vida Religiosa. Martins Fontes, 2000.
Norbert Elias, A Solidão dos Moribundos. J. Zahar, 2001.
Ana Freud, O Ego e os Mecanismos de Defesa. Artmed, 2006.
John Gray, Cachorros de Palha:  Reflexões sobre humanos e outros animais. Record, 2007.

Um comentário:

  1. "'A vida não é mais que uma fina chuva de verão', afagam os poetas".

    Saravá, sr. Reis!

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