Obras

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sexta-feira, 22 de setembro de 2017


A VIDA NÃO PERMITE RASCUNHO




Você leu aqui no primeiro módulo da série sobre reencarnação (A travessia no tempo), três semanas atrás, uma citação de Ernest Becker sobre a mentira caracterológica, ou mentira vital. Quero desenvolver um pouco mais essa questão, e para isso trago um panorama de A Negação da Morte, obra pantemporânea, clássica, densa, profunda, de um autor à frente do seu tempo que modestamente reconhecia Otto Rank como precursor e inspirador de todo o seu sistema de pensamento.

Retomo esse tema pela sua inegável relação no contexto deste blog que, apesar do nome, pretende sempre ir um pouco além da mera discussão sobre 'discos voadores', discussão essa, aliás, a meu ver, cada vez mais dispensável. Só um pouco além, repito. As conexões entre os temas são bastante óbvias porque a gênese é a mesma. Junte com tudo o que já leu aqui e sua reflexão se ampliará. Caso não tenha lido, o entendimento poderá ficar comprometido.

A angústia em torno da ideia da morte é algo constitutivo ao animal humano. A ideia da morte é algo tão forte que é recalcada logo no nascimento. O bebê, com seu ego ainda não constituído, vale-se do narcisismo dos pais para a construção de um projeto heroico sublimatório que dê conta dessa angústia que ele, sem instrumental psíquico, não dá. Toda a movimentação humana se dá em torno de um projeto heroico que sirva de suporte para a contenção da angústia e do sentimento de paralisia ante uma certeza negada, a morte. 

Segundo Becker, o grau de adaptação do indivíduo estaria ligado ao nível de encobrimento que o projeto heroico consegue trazer para ele. Nesse sentido, quem “mente bem” estaria adaptado e com suas angústias controladas por um tempo, até se fazer necessária uma nova mentira-remendo. Essas mentiras que nos contamos para darmos conta da certeza da finitude são nomeadas pelo autor como mentiras de caráter (mentiras caracterológicas) ou mentiras vitais.

Becker explica que diante da morte, por desempenhar um papel crucial na existência, a tendência humana é negá-la através de artifícios psicológicos inconscientes de autoengano e auto-ilusão. Creio dispensável listar de quais artifícios, mentiras e ilusões nos servimos. Becker centra sua análise também no conceito de heroísmo como a atitude humana arquetípica frente à realidade do mundo, da vida e da inexorabilidade da morte. Aliado ao conceito de heroísmo e não menos importante está o olhar psicanalítico sobre o narcisismo. Segundo ele, “Estamos perdidamente absortos em nós mesmos e, para cada um de nós, todos são sacrificáveis, exceto nós mesmos”. Vale destacar que sua análise antecede em muitos anos o advento das redes sociais, que amplificaram esse comportamento e certamente o fariam aprofundar o estudo. Nesse sentido, ele acrescenta que um pouco de vaidade e ilusão sobre nós mesmos evita cairmos em depressão profunda. Para mim, essa verdade por si só já deprime, mas, reconheço, só pode haver circo se houver pão, se você me entende.

Becker afirma que, na infância, vemos a luta pelo amor-próprio na sua fase menos disfarçada e que todo organismo proclama em voz alta as exigências de seu narcisismo. Esse desejo de extensão, esse desejo humano de se destacar, de ser algo na criação, quiçá ser o primeiro no universo, de provar que vale mais do que outra coisa ou pessoa é o que ele designa como “significância cósmica. Sem essa significância, mais desgraçado, degradado, degredado, efêmero, medroso, infantil, retardado e diluível - nessa ordem - o homem se torna.

Para Freud, o homem vive num mundo de símbolos e sonhos, seu narcisismo se alimenta de símbolos. Por isso, sua necessidade de incorporar símbolos e de se expandir neles, o que se constitui em uma forma de imortalidade. Considera-se, assim, que um dos conceitos básicos para compreender a ânsia do homem pelo heroísmo é a ideia de narcisismo, o instinto de sobrevivência e a necessidade de existir.

Necessidade de existir, necessidade de aplauso, afeto e afago, necessidade de auto-afirmação, necessidade de significância... Carências permanentes e absolutas. Deserto interior mais que exterior, imaturidade psíquica, fraqueza espiritual, fragilidade emocional, inanição intelectual, traços denunciadores e de uma existência esmagada pela finitude. Mentir é, sob todos os aspectos e em qualquer circunstância, trair-se, iludir o outro eu, falsear a realidade negando a verdade. O ápice da incoerência e da contradição é o sujeito mentir para si e acreditar na mentira! Só há perdedor nesse jogo, é não ter crédito em seu próprio banco. Como diria Giannetti, "é a lógica do círculo quadrado na geometria".

Espero que você tenha compreendido que nenhum crescimento e nenhuma liberdade de pensamento serão possíveis enquanto se viver na inefável Terra de Oz, o mundo do faz-de-conta, das fantasias, das utopias e quimeras. Transferir responsabilidades e delegar a tutela da existência a legisladores imaginários - deuses, anjos, espíritos, oráculos, extraterrestres, epifanias e demiurgos -, é assumir-se ingênuo, covarde e inapto para conduzir a própria vida com autonomia. A decisão é sua: Amadurecer acompanhando a velocidade do mundo ou ficar brincando de roda com o tempo. Acredite, você não terá segunda chance. 
A tão desejada imortalidade não está em nós, mas na obra que fazemos e deixamos, daí a importância das nossas escolhas. Não basta ler,  quero que você reflita a respeito.

No momento em que redigia estas linhas, Shakespeare irrompe na tela e se encaixa no texto a tempo: Somos feitos da mesma matéria que compõe os sonhos, e nossa breve vida está envolta em sono (...) A vida é uma sombra errante; um pobre comediante que se pavoneia no breve instante que lhe reserva a cena, para depois não mais ser ouvido. É um conto de fadas que nada significa, narrado por um idiota cheio de voz e fúria. Você é sempre bem vindo, William.

Para fechar, uma última reflexão com matiz poético: 
Somos a grande embarcação que navega à volta de um sol ardente no universo. Mas cada um de nós é também um barco que atravessa a vida com uma carga de genes. Quando a tivermos transportado até ao porto seguinte, não teremos vivido em vão. (Jostein Garder)



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Eduardo Giannetti, Auto-engano. Cia. de Bolso, 1997.
René Guénon, O Erro Espírita. Ingret, 2017.
Mary Del Priore, Do Outro Lado. Planeta, 2014.
William Shakespeare, Macbeth. Objetiva, 2003.
________. Como Gostais/Conto de Inverno. L&PM, 2009.
Theodore Dalrymple, Podres de Mimados. É Realizações, 2015

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