Obras

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sexta-feira, 6 de outubro de 2017


O SER EM ESTILHAÇADO


Como faço de vez em quando, o texto de hoje não é meu, mas do escritor, ensaísta e filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). Entre tantas obras, selecionei alguns excertos de A Rebelião das Massas, publicada em 1930, por três razões: Trata-se de um autor que pensou a vida, o mundo, o homem e a dinâmica da sociedade por uma perspectiva além de sua época; é uma obra mais atual que nunca, pois o indivíduo que ele disseca não é apenas o do seu tempo, mas do nosso, fala de mim, de você, de todos nós com precisão cirúrgica, e a terceira razão porque nos obriga refletir sobre o que somos e o que queremos ser. Mas há mais uma razão camuflada nas entrelinhas - O conteúdo da obra está estreitamente ligado à essência deste blog. 

O autor é abrasivo, sua análise é daquelas que ardem na alma como chá fervente na pele. Estamos diante de um espelho recoberto por finas películas que vão sendo retiradas, a última revelará nosso verdadeiro rosto, partindo-o em estilhaços. Ortega catapultou o homem e a sociedade do início do século 20 para o de hoje, o da "nova alienação" ou do "aperfeiçoamento da alienação cultural", ou ainda, se você preferir, da idiotização progressiva. Pergunte a Ortega que homem é esse, e ele lhe dirá: "É o homem previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado (…) Só tem apetites, pensa que só tem direitos e não obrigações: É um homem sem obrigações de nobreza". Ele o chama "homem-massa". Para ele, é a memória que nos distingue do animal: "Romper a continuidade com o passado é querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango".

Sua preocupação central assenta na massificação do indivíduo, em sua fusão com a multidão e a fratura consigo mesmo, que o leva, como efeito colateral, à procura de um lugar - seu lugar - nesse ajuntamento disforme. Sentindo-se parte do todo, ou pior, parte de uma parte de um todo inexistente, não percebe sua desvalorização, dessignificação, desfiguração, desintegração e desidentidade: "A característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte". Pensar como aos outros é navegar às cegas por um rio que desconhece, adernando caoticamente ao balanço das águas, agarrando-se uns aos outros e todos nas cordas imaginárias de um espectro idem quando sobrevém o naufrágio. Pensar por si exige autonomia e esforço. E coragem. 

Na esteira desse estado, Ortega vê com tristeza e temor o florescimento indiscriminado do hedonismo e do encantamento desmedido do homem consigo mesmo. Seu pobre patrimônio cultural e intelectual lhe basta: "Não é que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impõe o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito. Surge um novo tipo de homem, o que não quer dar razão nem quer ter razão, mas que mostra-se decidido a impor suas opiniões; é o direito a não ter razão. Possui idéias, mas é incapaz de formá-las. O modo de atuar é a "ação direta", invertendo a ordem promovendo a violência como prima ratio. Não deseja a convivência com o que não é como ele. Odeia mortalmente o que não é ele". Isso o torna fraco e precário, como diz Dalrymple, "podre de mimado", por obra de um "sentimentalismo tóxico que é progenitor, avô e parteira da brutalidade".

Mais é menos tanto quanto

Quanto menos substância tem o homem, mais vazio ele é; quanto mais fora do eixo, menos equilíbrio; quanto mais circunstância, menos história, menos memória; quanto mais crente, menos crítico. Quanto mais dogma, menos reflexão; quanto menos autêntico, mais subjugo; quanto mais paralisia, menos potência; quanto mais falência, menos ética. Quanto menos estrutura, mais fragmento; quanto menos andante, mais claustrofóbico. Não expandir é encolher, não aprender é errar, não renovar é morrer. Dizia Rubem Alves que ostra feliz não produz pérola. Oscar Wilde, por sua vez, diria que muitas pessoas apenas existem, poucas vivem. Hoje é infinitamente mais importante registrar do que viver o momento. A criança é mais graciosa no vídeo que no berço. A torta é mais suculenta na foto que no prato. A garota é linda no Face, já pessoalmente... O sujeito que se faz pela imagem, triste imagem de si mesmo. A ficção é mais realista que a própria realidade.

Cabe dizer que Ortega escreveu há 90 anos (os artigos originais datam de 1923 a 1927, reunidos e organizados para publicação em 1930), num cenário historicamente conturbado no teatro europeu entre o pós-guerra e a emergência do fascismo, do socialismo, provocando permanente análise e reflexão. Não lhe parece similar ao modelo vigente? Encerro com mais trechos de sua obra para sua análise e reflexão.

O bisturi de Ortega y Gasset

Observai os que vos rodeiam e vereis como avançam perdidos em sua vida; vão como sonâmbulos, dentro de sua boa ou má sorte, sem ter a mais leve suspeita do que lhes acontece. Ouvi-los-eis falar em fórmulas taxativas sobre si mesmos e sobre seu contorno, o que indicaria que possuem ideias sobre tudo isso. Porém, se analisais superficialmente essas ideias, notareis que não refletem muito nem pouco a
realidade a que parecem referir-se, e se aprofundais na análise achareis que nem sequer pretendem ajustar-se a tal realidade. Pelo contrário: o indivíduo trata com elas de interceptar sua própria visão do real, de sua vida mesma. Porque a vida é inteiramente um caos onde a criatura está perdida.

O homem o suspeita; mas aterra-o encontrar-se cara a cara com essa terrível realidade, e procura ocultá-la com um véu fantasmagórico onde tudo está muito claro. Não lhe interessa que suas "ideias" não sejam verdadeiras; emprega-as como trincheiras para defender-se de sua vida, como espantalhos para afugentar a realidade.

O homem de mente lúcida é aquele que se liberta dessas "ideias" fantasmagóricas e olha de frente a vida, e se convence de que tudo nela é problemático, e se sente perdido. Como isso é a pura verdade - a saber, que viver é sentir-se perdido -, quem o aceita já começou a encontrar-se, já começou a descobrir sua autêntica realidade, já está no firme. Instintivamente, como o náufrago, buscará algo para se agarrar, e esse olhar trágico, peremptório, absolutamente veraz porque se trata de salvar-se, lhe facultará pôr ordem no caos de sua vida. Estas são as únicas ideias verdadeiras; as ideias dos náufragos. O resto é retórica, postura, íntima farsa. Quem não se sente de verdade perdido perde-se inexoravelmente; é dizer, não se encontra jamais, não topa nunca com a própria realidade. 



Diferentemente dos animais, você tem o poder de escolha: Juntar-se à grande maioria de iguais solitários desprovidos de autonomia, tendo como lema "Um lugar de La Mancha é onde não me quero acordar"(D. Quijote)ou seguir a minoria de excelência na intrépida aventura do conhecimento. A primeira opção define quem você é, a segunda, quem você pretende ser. A primeira é solipsismo compartilhado, a segunda é saber multiplicado. A primeira é dissonante, a segunda é consonante. Quer um falso paradoxo? A maioria leva à menoridade, a minoria à maioridade. Kant repreende com enfado: "É cômodo ser menor!" O que você espera de você?

Imagem: Cortesia GD Fotografias.
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José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas. Ruriark, 2013.
Theodore Dalrymple, Podres de Mimados. É Realizações, 2015.
Immanuel Kant, Textos Seletos v. 2. Vozes, 1985.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Os seres nascem renovados, não? Realmente, não sei se é uma boa resguardar a memória e a tradição...

    Texto antigo, que julgava ultrapassado. Agora, um orangotango é bem mais feliz que o mais sábio dos homens! Abraço, senhor Reis.

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