Obras

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sexta-feira, 13 de outubro de 2017


O ESPÍRITO DAS LUZES




Não resisti e me animei a continuar o assunto da semana passada por julgá-lo de fundamental importância, e porque imagino, ou pelo menos espero, que você esteja fazendo a devida conexão com o prato principal deste blog, que já nem é tanto o "disco voador", mas o próprio ser. Então, depois de Ortega y Gasset, a ponte agora se estende a duas obras absolutamente indispensáveis para se compreender o intrincado universo humano: O opúsculo O que é o Iluminismo? de Immanuel Kant (1724-1804) e O Espírito das Luzes, do filósofo búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017), da qual tomei o título emprestado. Dois séculos, duas épocas e dois mundo as separam. Ao trazer Kant para a pós modernidade, Todorov pergunta: "De que modo podemos compreender o Iluminismo hoje? É possível estabelecer um diálogo com o contemporâneo, 250 anos depois?" Herdeiros desse pensamento, somos responsáveis pelos nossos atos e falas, tanto em relação a nós como ao outro, e essa atitude faz toda a diferença. 

O que é o iluminismo responde o próprio Kant:
Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de terceiros. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.
Pensar por si mesmo é uma espécie de "mandamento" kantiano, mais sutil do que aparenta, válida principalmente para o homem moderno, que não difere do antigo, ambos marcados pela preguiça e pela covardia. Preguiça e covardia de pensar! Tem coisa mais desprezível e mesquinha que isso? É a única faculdade que o distingue de um camelo e ele não a usa, preferindo igualar-se ao quadrúpede! É o que no fundo Kant está nos dizendo.

O período do Iluminismo - entre o final do século 17 e o 18 - caracterizou-se pela crítica a toda e qualquer crença, e por considerar o conhecimento como principal vetor para aprimorar a vida humana, em todos os sentidos. Kant empenhou-se em contribuir no sentido de estabelecer a crítica aos limites da razão, apontando-a como fonte e fundamento do conhecimento. Ele coloca a preguiça e a covardia como fatores que mantém a maior parte dos seres humanos na menoridade. É mais fácil agir segundo os ditames do outrens, os preceitos de um livro, as regras impostas por uma cultura, enfim, segundo alguém que nos guie. Sabe a quem ele está se referindo? Claro que sabe - aos gurus, profetas, cartomantes, astrólogos, marqueteiros, pastores, sacerdotes, oráculos, auto-ajuda... todos aqueles que contribuem para construir e consolidar a idiotia customizada. Ainda Kant:
Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um diretor espiritual que em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua. São, pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um andamento seguro.
Pensar é difícil e perigoso! Trapaceiros assumem com prazer a incumbência por você! Não há como não evocar Nietzsche quando ele diz que se você quiser lutar, lute; se quiser descansar, descanse; se quiser fugir, fuja, mas não recue sob nenhum pretexto, porque o mundo se articula para que desista. Em outras palavras, compete somente a você sair ou não da caverna. A semelhança com a alegoria é absoluta. Mais de dois milênios separam estes pensamentos e seguimos exercendo a ignorância a ponto de se tornar parte da condição humana mediocrizada! Além de preguiçosos, covardes! Pode haver algo mais humilhante, mais vergonhoso? 

Não ter coragem de pensar por si mesmo é encabrestar o intelecto, deixando-o ser inoculado por organismos exógenas lesivos, é terceirizar a vida entregando-a ao apetite de predadores vorazes, é sacramentar sua incompetência para governar-se. Estamos no coração do iluminismo pelo olhar de Kant. Desconfio que ele é um sobrevivente do século 18 observando incógnito o 21. Saiba que a razão é a nau capitânia que vai te fazer atravessar mares dos mais bravios entre brumas as mais espessas por caminhos sem fim. Faça como os velhos navegantes, que na escuridão da noite se guiavam pela luz das estrelas, e confiavam nelas. Jamais haverá vento a favor para quem não souber qual direção seguir. Não seja uma couve-flor, um molusco, um balde. Rejeite fórmulas cosméticas e suas artimanhas enganosas, não caia nessa cilada de rapinagem intelectual. Apure o senso crítico, ande com as próprias pernas, sem muletas, sem amparos, sem fios suspensos. Qual legado você quer deixar, afinal? Não faça seu dom supremo apodrecer no labirinto dos cegos. 



A esta altura, creio que você captou a mensagem que venho bombardeando todo esse tempo. Reformar o pensamento é tarefa dolorosa, árdua, desgastante, desconfortável. A faculdade da razão é a chave que nos liberta das correntes alienantes. Kant entende a liberdade como caminho, a liberdade como “fazer uso público de sua razão em todas as questões”. Estabelecendo um elo entre passado e presente, Todorov transita pelas Luzes e pelo nosso tempo, destacando que os acontecimentos capitais do século 20 levaram ao descrédito das ideias de humanismo, emancipação, razão, progresso e livre-arbítrio, propondo a emergência de “reascender as Luzes” dando-lhes um brilho renovado. E como ele fará isso? E como nós faremos isso? Com autonomia.

É assim que Todorov - e em seu tempo, Kant - entende como sendo a fórmula para a libertação da tutela de outrem - uma autoridade divina ou humana, um ditador ou uma ordem imposta de fora. E como se dá essa autonomia? Para ele, a autonomia surge na liberdade de examinar, questionar e duvidar. Dogmas e normas sagradas deixam de ser a régua do sujeito. Preciso sublinhar isto?  É esse o papel as Luzes, é esse o papel do homem ilustrado e do filósofo: submeter tudo à crítica da razão.

Os pensadores iluministas tinham noção de que o indivíduo não é estritamente racional e que a razão opõe-se à fé religiosa. Crítica e razão, no entanto, estão ligadas ao saber, e este pode ser emancipador do homem. Há que se destacar que a autonomia só terá valor e sentido se ética, sem transgredir as regras da autoridade social - a dos homens para os homens. Essa autonomia individual, nos tempos pós modernos. cruza com problemas de grandeza global, adverte Todorov, mas essa é uma longa história posto que sua análise estende os tentáculos a aspectos de mesma magnitude. Como quer que seja, se queremos recuperar, ou melhor, viver o espírito das Luzes, temos que nos guiar por elas.


Para Todorov, o conhecimento vem pela experiência e pela razão, esta valorada como instrumento [do conhecimento], opondo-se à fé e às paixões. A compreensão que se tem hoje do conhecimento é de algo objetivo, universal e impessoal, apropriação e domínio do mundo a partir da acumulação de verdades objetivas que devem permanecer externas ao homem. O espírito das luzes segue três linhas de força fundamentais: autonomia do conhecimento (pensar por si mesmo), finalidade desse saber (propagar a verdade) e a terceira força, a universalidade - ser cosmopolita, sem fronteiras e sem restrições. Essas definições foram aqui simplificadas, claro, tudo é bem mais amplo.

Ainda que me alongue, e só faço quando necessário, não posso deixar de acrescentar um pensamento seminal de Kant, com o qual encerro a conversa de hoje.
A crença ou a validade subjetiva do juízo, relativamente à convicção (que tem uma validade objetiva), apresenta os três graus seguintes: opinião, e ciência. A opinião é uma crença, que tem consciência de ser insuficiente subjetiva e objetivamente. Se a crença apenas é subjetivamente suficiente e, ao mesmo tempo, é considerada objetivamente insuficiente, chama-se . Por último, a crença, tanto objetiva como subjetivamente suficiente, recebe o nome de ciência
Mas a verdade repousa na concordância com o objeto e, por conseguinte, em relação a esse objeto, os juízos de todos os entendimentos devem encontrar-se de acordo (consentientia uni tertio, consentiunt inter se). A pedra de toque para decidir se a crença é convicção ou simples persuasão, será, portanto, externamente, a possibilidade de a comunicar e de a encontrar válida para a razão de todo o homem, porque então é pelo menos de presumir que a concordância de todos os juízos, e apesar da diversidade dos sujeitos, repousará sobre um princípio comum, a saber, o objeto, com o qual, por conseguinte, todos os sujeitos concordarão e desse modo será demonstrada a verdade do juízo.
Ao apagar das luzes (ops!) deste post, alguém pede a palavra. É Pascal, matemático e filósofo francês do século 17, para dizer que Toda a nossa dignidade consiste no pensamento. É daí que temos de nos elevar, e não do espaço e da duração que não conseguimos preencher. Trabalhemos, pois, para pensar bem: eis o princípio da moral.



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Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Edições 70, 1995.
________. A Crítica da Razão Pura. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Tzvetan Todorov, O Espírito das Luzes. Barcarolla, 2008.

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