Obras

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sexta-feira, 20 de outubro de 2017


ALUCINAÇÃO: A TRAIÇÃO DOS SENTIDOS (I)


Começo hoje uma nova série para debate, desta vez sobre alucinação, incluindo as "visões" coletivas. É assunto controverso, extenso, complexo, delicado, objeto de interpretações diversas e geralmente errôneas, por desinformação, o que pede a intervenção esclarecedora de especialistas nos domínios da Religião, da Psicologia e da Neurociência, áreas em que iremos nos ocupar para tentar trazer um pouco de luz. A Psicologia do comportamento, as Ciências Sociais, a Psiquiatria e agora a Engenharia Genética também se debruçam sobre o tema, mas não serão abordadas aqui por motivos óbvios. Não tenha dúvidas, a literatura é enorme, permanentemente atualizada, portanto não cabe a pretensão de esgotar o assunto, mas proporcionar um panorama razoável. Ademais, vou me ater apenas às alucinações visuais, porque as olfativas e auditivas (vozes, música, ruídos), também importantes, ficam de fora neste momento.

Uma boa definição de alucinação é dada pelo neurologista inglês Oliver Sacks (1933-25015), autor de prestígio e infatigável divulgador científico:
Quando a palavra ‘alucinação’ foi usada pela primeira vez, no começo do século XVI, denotava apenas ‘uma mente divagante’. Só nos anos 1830, o psiquiatra francês Jean-Étienne Esquirol deu ao termo sua presente acepção. Ele apontava a "loucura" como a soma de duas causas: a predisponente, associada à personalidade, e a excitante, fornecida pelo ambiente. A Psiquiatria atual emprega outros termos para dizer a mesma coisa. Antes disso, o que hoje chamamos de alucinação era chamado simplesmente de ‘aparição’. As definições precisas da palavra variam consideravelmente, sobretudo porque nem sempre é fácil discernir as fronteiras entre alucinação, erro de percepção e ilusão. De modo geral, porém, definimos alucinações como percepções que surgem na ausência de qualquer realidade externa - ver ou ouvir coisas que não existem. 
Os relatos de alucinações atravessam a história humana, mas nos tempos pré-modernos elas eram explicadas através da linguagem simbólica das experiências religiosas de transe, de magia, profecias, ou por intermédio da percepção meta-empírica de ordem mística ou divina. Somente no fim do século 18 e início do seguinte é que foi possível traçar uma etiologia e uma fenomenologia da manifestação alucinatória nas áreas da Neurociência, da Psicologia e da Psiquiatria. Um ponto interessante é a relação que Sacks apresenta entre alucinações e religião. Ele entende que muitas dessas percepções podem adquirir uma interpretação divina, como a visão de anjos, demônios, pessoas que já se foram – ou a visão de si mesmo, como uma experiência extracorpórea enquanto se está entre a vida e a morte, acreditando que o espírito “saiu do corpo”. 

Foi-se o tempo de atrelar a alucinação à loucura, à demência ou a outros distúrbios mentais como a esquizofrenia, por exemplo. A alucinação, principalmente aquela não patológica, a do tipo transitória, é comum em nossa cultura, porém muito mal compreendida. Está na raiz das religiões e do misticismo e pode explicar uma boa quantidade de acontecimentos misteriosos como aparições de criaturas sobrenaturais, santas, entidades etéreas, deuses e fantasmas, visões e encontros com alienígenas, "viagem astral" e experiências de quase-morte.

Enquanto certas aparições envolvem um único observador, vidente ou receptor de uma suposta mensagem, pode-se interpelar fortemente sobre a sua legitimidade, mas quando ocorre para centenas ou milhares de olhos simultaneamente, é lícito duvidar? Poderia afirmar tratar-se de alucinação coletiva? É possível tal fenômeno? No caso de Fátima, por exemplo, teria ocorrido uma visão em massa ou a santa, de fato, apareceu para a multidão? Teria o sol “dançado” como afirmam os presentes?

Sacks conhece bem estes aspectos e derruba alguns preconceitos, desmistifica outros e discorre com clareza sobre a riqueza da percepção e das faculdades imaginativas. Ele está seguro de que, nas alucinações, as imagens evocadas se projetam no espaço externo e possuem as mesmas qualidades (ou quase) das coisas percebidas pelos sentidos. Ele salienta que “Muitas alucinações parecem ter a criatividade da imaginação, dos sonhos ou da fantasia – ou os vívidos detalhes e a externalidade da percepção. Mas uma alucinação não é nenhuma dessas coisas, embora possa ter alguns mecanismos neurofisiológicos em comum com cada uma delas.”

Caso você não saiba as sutis diferenças entre alucinação, delírio e ilusão, sintetizo-as:

Alucinação - É a percepção real de um objeto inexistente, isto é, são percepções sem um estímulo externo. A percepção é real, considerando a convicção que a pessoa manifesta em relação ao objeto alucinado, portanto, "real" para o alucinando. Sendo a percepção da alucinação de origem interna, emancipada de todas as variáveis que possam acompanhar os estímulos ambientais, o objeto alucinado é percebido mais nitidamente que o objeto real.

Ilusão - (raiz latina ludus) - Estímulo percebido de forma deformada, ou seja, apenas um “engano”dos sentidos, sem a presença real do objeto. Pode ser traduzida por farsa, logro, jogo (daí "lúdico"). O fenômeno alucinatório tem conotação muito mais mórbida que a ilusão, sendo normalmente associado a estados psicóticos que ultrapassam uma simples falha dos sentidos. Na alucinação, o envolvimento psíquico é muito mais contundente que nos estados necessários à ilusão.

Delírio - O filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers definia-o como um juízo patologicamente falso da realidade. Para tal, ele deve apresentar três características, ou "regras": a) Deve apresentar-se como uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável; b) Deve ser impenetrável e incompreensível para o indivíduo normal, bem como impossível de sujeitar-se às influências de correções quaisquer, seja através da experiência ou da argumentação lógica e; c) Impossibilidade de conteúdo plausível.
Os casos que não se encaixarem nessas regras não devem ser entendidos como delírios verdadeiros ou primários, mas como ideias deliroides ou delírios secundários.

Sacks despeja uma avalanche de interrogações:
As alucinações sempre tiveram um lugar importante em nossa vida mental e em nossa cultura. Devemos até nos perguntar em que medida experiências alucinatórias ensejaram nossa arte, nosso folclore e até mesmo nossa religião. Será que os padrões geométricos vistos na enxaqueca e em outros distúrbios prefiguram os temas da arte aborígine? As alucinações liliputianas (que não são raras) teriam originado os gnomos, diabretes, leprechauns e fadas do folclore? As terríveis alucinações do pesadelo de ser cavalgado e sufocado por uma presença maligna teriam algum papel na geração dos nossos conceitos de demônios, bruxas e alienígenas malévolos? As convulsões extáticas, como as de Dostoiévski, contribuíram de algum modo para gerar o nosso senso do divino? As experiências extracorpóreas legitimam a ideia de que uma pessoa pode sair do corpo? A insubstancialidade das alucinações encoraja a crença em fantasmas e espíritos? Por que toda cultura conhecida procurou e encontrou drogas alucinógenas e as usou, antes de tudo, com propósitos sacramentais? O tempo só fez ampliar e aprofundar nossa compreensão da grande importância cultural do que poderia, a princípio, parecer pouco mais do que uma peculiaridade neurológica.
Por ora é o que nos basta. Aguarde a próxima publicação.
  
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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.

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