Obras

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sexta-feira, 27 de outubro de 2017




ALUCINAÇÃO: DESCOMPASSO DA MENTE (II)

Neste segundo capítulo sobre as alucinações, vamos conhecer algumas de suas muitas causas, descritas resumidamente:
Transtorno psicótico compartilhado - quando  o sujeito portador de um distúrbio  psicológico com manifestações delirantes mantém estreita relação com outras pessoas, passando a ser o "caso primário", reforçando as crenças paranoicas dos demais; 
Lesão cerebral -  traumatismos, concussão, choque, aneurisma, câncer, esclerose, etc;
Deficiência visual - glaucoma, catarata, tumores, Síndrome de Charles Bonnet*;
Histeria em massa - acomete grande número de pessoas, com sintomas de náuseas, hiperventilação, desmaios;
Doença de Creutzfeldt-Jakob - rara doença degenerativa do cérebro que quando afeta o lobo occipital causa perda de movimentos e sensações, provocando as alucinações;
Síndrome de Alice no país das maravilhas - síndrome neurológica que provoca percepções distorcidas de tempo e espaço, inclusive do seu próprio corpo;
Licantropia clínica - distúrbio psiquiátrico extremamente raro no qual a pessoa acometida acredita ter se transformado em lobo ou outro animal, com nítida sensação de possuir pelos, garras, dentes salientes e outras características não humanas;
Síndrome de Erikson - também conhecido por "delírio parasitário", quando a pessoa credita estar infestada de parasitas sob a pele. Tentando se livrar dos patógenos, provocam escoriações, feridas, infecções graves e automutilações;
Síndrome de Cushing - é a alta concentração de hormônio cortisol, ou hormônio de stress, com visíveis sinais cutâneos (estrias em várias partes), inchaço facial, obesidade e perda da libido. Casos psiquiátricos relatam euforia, delírios paranoicos e alucinações visuais e auditivas.
As alucinações podem acontecer quando um elemento interno dispara um padrão de atividade equivalente ao que é normalmente gerado quando um órgão do sentido responde a um evento publicamente observável. Estudos revelam que cerca de 4% das pessoas em uma população possuem uma imaginação muito intensa e mais dificuldade em julgar as diferenças entre eventos reais e imaginários.  Alguns exemplos típicos de personalidades propensas às fantasias são os grandes visionários do passado compelidos por vozes ou visões alucinatórias, como Sócrates, Joana D'Arc, Santa Terezinha e Swedenborg, mas se encaixam nessa definição também os que relatam abduções em naves alienígenas, os que ouvem vozes e os “médiuns visuais” que veem espíritos em profusão, por toda parte e a todo momento. As alucinações aproveitam o material já arquivado na memória arquetípica  do indivíduo, que é interpretado segundo seu sistema de crenças e valores e em seu universo cultural.

Pierre Janet (1859-1947), filósofo e psicólogo, defendia a existência de uma “segunda consciência” subjacente à corrente normal de pensamentos. Quando a personalidade humana perde sua coesão, se liquefaz, uma parcela da consciência separa-se do conjunto e dá origem a diversos automatismos motores e sensoriais, isto é, fenômenos tão distintos como anestesias, catalepsias, escrita automática, sonambulismo, alucinações e possessões seriam formas de “desagregação psíquica”, manifestações de uma corrente secundária (Janet usa “conservadora”) de pensamentos, vontades e imagens que se sobrepõe ao campo habitual de consciência.

O historiador e antropólogo Michel de Certeau (1925-1986) sugere uma análise da mística a partir de componentes psicanalíticos sublimatórios e de deslocamentos libidinais, expondo sua visão sobre as alucinações e visões coletivas: “As referências englobantes e os discursos dogmáticos que vêm da tradição, aparecem como particularidades. Estão na própria experiência dos crentes, elementos, entre outros, num quadro onde tudo fala de uma unidade desaparecida. O que era totalizante não é mais senão uma parte nesta paisagem em desordem, que requer um outro princípio de coerência. Os critérios de cada comunidade crente se encontram, por isso, relativizados [...].” Seu comentário final pede atenção: “Desta maneira, massas populares sem âncoras e como que errantes através dos enquadramentos sociais e simbólicos, são entregues a alucinações feiticeiras que esta ausência cria. O ceticismo que se estende atesta a mesma ausência, mas nos meios cultivados. Feitiçaria e ceticismo, com efeito, esboçam o vazio que uma razão universal ou uma Lei Natural não preenchem.”

Ele chega a concluir que as alucinações desempenham um importante papel na nossa vida e na história das artes, da religião e da cultura de um modo geral, e que nossa ingênua concepção da realidade, segundo a qual nós percebemos o mundo de forma praticamente direta por meio de nossos sentidos, parece estar totalmente equivocada. O contínuo avanço das pesquisas nas neurociências contribui enormemente para a compreensão da nossa estrutura mental, mas isso só será possível quando e se admitirmos que os deuses não são astronautas ou entidades sutis vindos do puro éter que só se revelam a eleitos. "São apenas projeções de um drama interior encenado desde as origens em cada um de nós, cujos medos e esperanças se recortam à contraluz da película invisível da mente". 

Para concluir, o desenvolvimento nos últimos anos dos processos laboratoriais de análise investigativa da genética sobre aspectos moleculares fez um grande avanço, despertando a atenção da comunidade científica nos estudos etiológicos sobre a importância do ambiente familiar na arquitetura dos processos alucinatórios. Segundo Aranha, "Há suficientes evidências da presença de um componente genético familiar substancial na origem dos processos alucinatórios, notadamente quando ocorrem na esquizofrenia. Essas evidências provêm de um grande número de estudos familiares, em irmãos gêmeos, não gêmeos e adotados, realizados em diversas populações." Estudos mais recentes recrudescem essa validade graças a aparatos diagnósticos cada vez mais precisos. 

As alucinações coletivas podem ser induzidas pelo poder da sugestão? Sim. Ocorrem geralmente em situações de exaltação emotiva, especialmente entre devotos religiosos, mas não necessariamente. A expectativa e esperança de ser testemunha de um milagre (a causa predisponente de Esquirol)  combinadas com longas horas de olhar fixo num objeto ou lugar (a causa exitante), torna certas pessoas suscetíveis a ver coisas tais como uma imagem que chora ou que se move, ou a aparição da Virgem Maria ou até de sóis dançantes. Relatos de guerra dão conta de soldados que, mortos em combate, “ressurgem” no campo de batalha para avisar os companheiros sobre ciladas e ataques inimigos, ou simplesmente para “se despedirem”. Sacks acrescenta que as alucinações podem ser cheias de surpresas e  frequentemente mais detalhadas do que as imagens mentais. Muitos casos envolvendo a morte de entes queridos dão conta de que os familiares, por diversas vezes e por muito tempo (meses ou anos), “conversaram” longamente com seus cônjuges, filhos, pais e parentes falecidos, segundo Sacks, um claro sintoma de alucinação visual e auditiva.

* Descoberta em 1769 em pacientes com perda parcial ou total da visão por acidente, tumores ou lesões internas; as alucinações podem ser simples ou complexas, nítidas, silenciosas, com duração variável.



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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.
Vilayanur Ramachandran, Fantasmas no Cérebro. Record, 2004.

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