Obras

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domingo, 29 de outubro de 2017


ALUCINAÇÃO: CRENÇA NO NÃO REAL (III)



Nos textos anteriores vimos que a alucinação carrega tintas que pintam um quadro de reflexões profundas. A traição dos sentidos e o descompasso da mente conduzem a um preocupante desequilíbrio do físico, do mental e do emocional. É deste que falamos agora. O antropólogo britânico Ioan Lewis (1930-2004) afirma que o rito, a fé e a experiência espiritual são a base das religiões, mas destaca que a experiência deve ser vista sob o quadro social onde é vivenciada, porque ela carrega as marcas da cultura e da história daquela sociedade:
Os fenômenos acessórios ligados a tais experiências, particularmente o 'dom das línguas' (xenoglossia), a profecia, a clarividência, a transmissão de mensagens e outros dotes místicos têm, naturalmente, atraído a atenção não apenas dos devotos mas também de céticos. Para muitos, de fato, esses fenômenos parecem fornecer provas persuasivas da existência de um mundo transcendente ao da experiência cotidiana comum. 
 Não é errado afirmar que as visões de cunho religioso se equiparam às de fantasmas e seres da natureza conhecidos como elementais – fadas, duendes, gnomos, sílfides e outras entidades míticas (ou místicas). Todos provêm do psiquismo humano e são classificados como alucinações, diferentemente de delírio. De acordo com a American Psychiatric Association, a definição técnica para alucinação é “A percepção sensorial falsa na ausência de um estímulo externo real. Pode ser induzida por fatores emocionais e outros como drogas, álcool e estresse, em qualquer dos sentidos - visão, audição, olfato...”

Por sua vez, o filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910) defendia a ideia de que a experiência religiosa pessoal tem raízes nos estados místicos da consciência: 
O estudo das alucinações tem sido, para os psicólogos, a chave da compreensão da sensação normal, assim como o estudo das ilusões tem propiciado a chave da compreensão da percepção. Os impulsos mórbidos e as concepções imperativas, as chamadas “ideias fixas”, projetaram torrentes de luz sobre a psicologia da vontade normal; e as obsessões e delírios executaram o mesmo serviço para o estudo da faculdade normal da crença". James estava convencido que a imaginação ontológica humana é o poder de convicção do que ela cria. "Seres irretratáveis são concebidos, e concebidos com uma intensidade quase igual à de uma alucinação.”
Chamo a sua atenção para o que nos conta o historiador israelense Yuval Harari a respeito da "criatividade" humana para crer no que não vê, no ponto em que trata da revolução cognitiva no capítulo A árvore do conhecimento. O que fica claro é que o exercício da imaginação é ancestral, atravessa milênios, muitos milênios - cerca de 70 mil anos. O texto é instigante:
Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Antes disso, muitas espécies animais e humanas foram capazes de dizer: Cuidado! Um leão!” Graças à Revolução Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: O leão é o espírito guardião da nossa tribo. Essa capacidade de falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos sapiens. É relativamente fácil concordar que só o Homo sapiens pode falar sobre coisas que não existem de fato e acreditar em meia dúzia de coisas impossíveis antes do café da manhã. Você nunca convencerá um macaco a lhe dar uma banana prometendo a ele bananas ilimitadas após a morte no céu dos macacos.
Mas isso é tão importante? Afinal, a ficção pode ser perigosamente enganosa ou confusa. As pessoas que vão à floresta à procura de fadas e unicórnios parecem ter uma chance menor de sobrevivência do que as que vão à procura de cogumelos e cervos. E, se você passa horas rezando para espíritos guardiães inexistentes, não está perdendo um tempo precioso, tempo que seria mais bem utilizado procurando comida, guerreando e copulando? Mas a ficção nos permitiu não só imaginar coisas como também fazer isso coletivamente. Podemos tecer mitos partilhados, tais como a história bíblica da criação, os mitos do Tempo do Sonho dos aborígenes australianos e os mitos nacionalistas dos Estados modernos. Tais mitos dão aos sapiens a capacidade sem precedentes de cooperar de modo versátil em grande número. 
Do ponto de vista da psicologia analítica, Jung preconiza que, na doença mental, o inconsciente se sobrepõe à consciência, rompendo as barreiras de contenção do próprio inconsciente, e, com isso, as alucinações apresentam à consciência uma parte do conteúdo ali depositado, que passa para o seu domínio. Assim sendo, as alucinações - e os delírios - não nascem de processos  conscientes, e sim, inconscientes, cujos fragmentos brotam na consciência tal qual no sonho, ou seja, dissociados. A metáfora é pertinente: a alucinação pode ser vista como um sonhar desperto, ou, o sonho uma alucinação dos lúcidos. Faz sentido: todo sonho é sim uma "alucinação", já que estamos tão envolvidos no cenário onírico que os elementos, por mais absurdos que sejam, são tomados pelo sonhador como normais, fazendo parte daquela realidade, a sua realidade, sem contestação. É a manifestação do repertório inconsciente sob a forma de alucinação na consciência. A predisposição da consciência para tal é latente. Falaremos mais sobre este aspecto na próxima semana, quando teremos a participação de um  convidado especial com larga bagagem nesse campo.

Para encerrar a conversa de hoje, há um aspecto que não pode ser posto de . Na esfera da Filosofia, as alucinações podem ser consideradas como mecanismo de defesa patológico do sujeito social ante uma cultura cada vez mais esquizofrênica; é o surgimento de uma realidade metafísica que se funde na realidade física, tornando-se indistinguível. Sobre a cultura esquizofrênica, não sou apenas eu quem diz, é a radiografia que estudiosos de vários setores fazem sobre o presente, e não precisamos ir muito longe para constatar isso. Toda sociedade tem sua cultura própria, e se ela for esquizofrênica, a sociedade também o será. Esquizofrênica, aqui, cabe perfeitamente ser entendida como alienante, podendo ser idiotizante chegando ao limiar da insanidade.
Entre tantos, este é mais um tema recorrente, e se insisto nele é para que você saiba da extensão e gravidade do problema. Só para constar: do grego skhizen - separar, dividir, cindir, e phrein - razão, mente. Acho que você entendeu.




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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.
Vilayanur Ramachandran, Fantasmas no Cérebro. Record, 2004.
Yuval Harari, Sapiens: Uma breve história da humanidade. L&PM, 2015.

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