Descobrir a gota ocasional de verdade no meio de um grande oceano de confusão e mistificação requer vigilância, dedicação e coragem. Mas, se não praticarmos esses hábitos rigorosos de pensar, não podemos ter a esperança de solucionar os problemas verdadeiramente sérios com que nos defrontamos, e nos arriscamos a nos tornar uma nação de patetas, um mundo de patetas, prontos a sermos passados para trás pelo primeiro charlatão que cruzar o nosso caminho.
O que você acabou de ler é um 'alerta'
em O Mundo Assombrado pelos Demônios, de Carl Sagan, escrito há
pouco mais de 20 anos. O texto curto merece reflexão extensa, e é dele
que me servo, pedaço por pedaço. Por quê? Nos últimos dias assisti a
entrevista de um amigo na TV (depois constatei que as outras participações seguem o mesmo tom), e debati com outro pela rede, e estas duas situações
serviram de gancho para a conversa de hoje. O que eles têm em comum? São
simpáticos misticóides crédulos, irredutíveis em suas crenças.
"Misticóide" não tem caráter ofensivo porque, na acepção, trata das
pessoas que são exageradamente místicas, acreditam em espíritos,
anjos, magia, pêndulos, astros, oráculos, alienígenas, porém sem a
mínima noção do exercício lúdico e maduro dos verdadeiros místicos. Quanto
as patetas de que fala Sagan, são os ingênuos, inocentes, inexperientes,
excluídas as crianças.
Uma observação importante: Sagan era
conhecido pelo ceticismo em relação a discos voadores e seres alienígenas, mas
não sobre vida extraterrestre, que é muito diferente. Ele a
considerava possível mas de difícil comprovação. Seu arrazoado lógico e
científico, seu amplo saber em várias áreas e sua retórica refinada
dificultavam a réplica sobre Ets. Quem se dispusesse a debater com ele
precisava ter argumentos contrários sólidos no mesmo nível de conhecimento.
No mínimo, ele provocava muita reflexão. No passado, eu mesmo torcia o nariz quando ouvia
seu nome, até reconhecer que ele estava coberto de razão. Não doeu nem um pouco
rever meus conceitos.
Descobrir a gota ocasional de verdade no meio de um grande oceano de confusão e mistificação
Com muita consciência, lucidez e sem
qualquer traço de vaidade, é o que venho fazendo nas últimas três décadas
através dos livros, dos artigos publicados por instituições
acadêmicas fora do país, e neste blog desde 2015 em mais de 100 postagens. É
bastante, mas não suficiente. Dadas as devidas proporções, não pretendo impor
nenhuma verdade, mas, como Sagan e outros nomes incansavelmente presentes aqui,
trazer claridade e conteúdo mais profundo e substancial. O amigo entrevistado,
camarada experiente, inteligente, rodado como eu, infelizmente se perdeu em
erros históricos primários, inexplicáveis para alguém do seu naipe,
conduzindo-se a seguir no padrão anos
70 ao falar de abduções, física quântica, círculos ingleses, deuses
astronautas, pirâmides, bíblia, ufologia como paraciência.... Uma decepção, pois esperava uma fala madura, e o que vi
foi a postura de um aprendiz infeliz no que diz.
requer vigilância, dedicação e coragem.
Entendo como vigilância, a
busca seletiva por novos saberes, atualização e revisão contínuas de conceitos;
por dedicação a escolha criteriosa permanente nessa busca,
ampliando o leque de novas investigações, mente aberta a possibilidades não
pensadas e sensibilidade para prospectar campos não explorados. Ademais,
manter-se firme nos objetivos, evitando deixar-se seduzir pelas tentações
aliciadoras do lugar-comum.
Coragem é um
capítulo à parte. Coragem é absorver críticas e promover autocrítica, ter clareza de estar em rota de colisão ao senso comum com todos os dissabores
implícitos. Coragem é abrir-se e acolher o novo quando fundamentado na
lógica, na experiência e na ciência lato sensu; é saber
aprender, saber estudar, saber discernir e saber assumir o tamanho da
própria ignorância, em outras palavras, ter a capacidade de enfrentar o medo do desconhecido.
Coragem, enfim, é não esperar a tormenta passar, mas aprender a dançar na
chuva.
Um depoimento pessoal: Quando
surgiu o momento oportuno (do latim ob portus - vento que conduz ao porto) de navegar por outros
mares, não hesitei em sair daquela 'ilha' (latim insula - isola) e seguir meu instinto para rumos que me
levariam à 'saída' (grego exodus - exit, êxito).
Curioso é que quem primeiro levantou minhas âncoras e mostrou outros horizontes foi justamente este amigo do debate!
Na conversa, apesar da longa, sincera e respeitosa amizade, fica sempre um
sentimento mútuo de frustração. Sua sentença é: "Eu vejo tudo
isso como um processo gradual de aproximação de inteligências de fora do
planeta. É a minha certeza, minha convicção". Todo crédulo renitente não
deixa brechas para qualquer diálogo mais expansivo, o que caracteriza falta de
repertório, humildade e inteligência. Inteligência, do latim intus
legere - "ler por dentro", por extensão é a capacidade de
percepção e apreensão da realidade do mundo com profundidade. Tal compreensão
assusta e deprime os fracos, fazendo com que busquem preencher este vazio
pelas vias escapistas alienadoras dessa realidade, e tome doses generosas de esoterismo, misticismo,
ocultismo, etc. O fosso que separa o real do irreal - ou surreal - é abissal.
Mas, se não praticarmos esses hábitos rigorosos de pensar, não podemos ter a esperança de solucionar os problemas verdadeiramente sérios com que nos defrontamos
Semanas atrás falei aqui sobre o preço da
história, e é sobre isso que Sagan se refere, a premissa básica da vida:
pensar. Não pensar é inércia, é ter certezas e não seguir adiante. Nesse
sentido, todo misticóide crédulo é, por definição, heterônomo - não pensa por
si, obedece e se submete aos desígnios de
um ente externo, seja quem ou o que for. Pensar irriga a terra, fornece alimento, floresce
ideias, instiga saber, fortalece, renova e transforma. É
questão de escolha: ou você se senta à beira sombreada da estrada e deixa passar as estações, ou se move sob a luz em direção à colheita.
e nos arriscamos a nos tornar uma nação de patetas, prontos para sermos passados para trás pelo primeiro charlatão que cruzar o nosso caminho.
Uma nação da patetas! Eis aí o alto custo
que a história nos impõe em razão da nossa indolência - ser passado para trás
por charlatães, vigaristas, trapaceiros e misticóides, que se valem da
inocência e ingenuidade, em última análise, da ignorância alheia,
apropriando-se de um falso conhecimento para fazer prevalecer suas artimanhas
em proveito próprio, jamais coletivo. Uma nação de patetas não tem o que
reclamar. O ausente nunca tem razão. Quero lembrar mais uma vez que o preço da história é alto e não necessariamente será você o
pagador, mas poderá ser o responsável pela dívida.
Você perguntará o que Papai Noel tem com isso? Bem, eu poderia falar do coelhinho da Páscoa ou de fadas, que
contemplam o mesmo simbolismo e o mesmo olhar psicanalítico, mas fica para depois. Papai Noel é de origem longínqua e desconhecida,
figura mítica de natureza religiosa - renovação, renascimento, baseada em crença. Chega às casas (corações) pelos céus montado numa carruagem. Espero que você esteja me acompanhando, preste atenção aos itálicos. O 'bom velhinho' é a representação do personagem transcendente, imaginário, supranatural, fabuloso (do latim fabula, falação, oralidade). Sua longa barba branca denota uma existência longeva, referência ao Velho, ao Sábio, ao Pai! Vem do reino da fantasia para atender nossos desejos, os desejos da criança e dos adultos-crianças, sempre com a mão erguida à procura de alguém que os ampare, os conforte, os proteja, que torne realidade as suas mais candentes esperanças. Notou alguma semelhança?
figura mítica de natureza religiosa - renovação, renascimento, baseada em crença. Chega às casas (corações) pelos céus montado numa carruagem. Espero que você esteja me acompanhando, preste atenção aos itálicos. O 'bom velhinho' é a representação do personagem transcendente, imaginário, supranatural, fabuloso (do latim fabula, falação, oralidade). Sua longa barba branca denota uma existência longeva, referência ao Velho, ao Sábio, ao Pai! Vem do reino da fantasia para atender nossos desejos, os desejos da criança e dos adultos-crianças, sempre com a mão erguida à procura de alguém que os ampare, os conforte, os proteja, que torne realidade as suas mais candentes esperanças. Notou alguma semelhança?
Criança que acredita em Papai Noel,
coelhinhos e fadas não é pateta, o adulto sim, ainda mais
quando esse Noel é franzino e de outra cor. Daqui em diante
entraríamos no universo dos contos infantis, da Filosofia e da Psicanálise. É
de Freud as palavras finais:
...Não devemos esquecer que o relacionamento analítico se baseia no amor à verdade, isto é, no nosso reconhecimento da realidade e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou engano. Você entendeu a mensagem. Quanto aos misticóides crédulos... prisioneiros do tempo.
Só, insuficiente e em eterna agonia,
o homem clama por qualquer Outro
P.S. up-to-date: Eu alertei na semana passada sobre impostura desmedida: Acontecerá neste domingo dia 5, no Rio de Janeiro mais uma vigarice explícita - "UFOS, 2019: Chico Xavier e a Transição Planetária", e "Marte, a verdade encoberta". Essa sem-vergonhice será ministrada por um conhecido apedeuta patafísico nefelibata ao custo de R$ 50 por cabeça. É só mais uma reunião de patetas.
William A. Corsaro, Sociologia da Infância. Artmed, 2011.
Outro brilhante texto sobre a tragicomédia em que se transformou a ufologia!
ResponderExcluirAbraço.