Obras

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sexta-feira, 10 de agosto de 2018

TERRA RARA, VIDA RARA
Parte 1

Decidi voltar ao assunto "vida extraterrestre inteligente" trazendo, desta vez, a palavra  de um especialista, Marcelo Gleiser*. Melhor, trago a íntegra do capítulo do seu livro Criação Imperfeita que dá título ao post, com uma diferença: Gleiser coloca uma pergunta e eu, uma afirmação. Prepotência? De forma alguma, vida rara não quer dizer "única" (embora possa sê-la), apenas pouco comum, não sendo abundante quanto se possa pensar, como veremos. Começamos, assim, uma nova série para tentar jogar um pouco mais de luz à questão. Peço que você tenha muita atenção na leitura dos textos porque é aqui que nasce o "pecado original" da ufologia. Pecado, do latim pecatum - tropeço, engano, passo em falso.

A premissa fundamental que poderia dar à ufologia uma credibilidade minimamente sustentável - e legitimidade - seria a comprovação científica da existência de vida extraterrestre inteligente, mas não há nada, nenhum sinal, o menor vestígio num raio de 200 anos-luz de qualquer tipo de vida da mais básica que seja. Trabalhar com dados lógicos, técnicos e científicos é o único caminho possível para se chegar a resultados concretos. A partir daqui Gleiser é o dono da palavra. Vamos viajar com ele.
Esta introdução foi necessariamente longa para dar ideia da complexidade de se chegar à vida inteligente, e é apenas o começo. Os demais capítulos serão mais enxutos sem perder a clareza. Não deixe de ler, com atenção.Inseri comentários destacados do texto.
...

Quando estudamos a origem e a evolução da vida, fica claro que uma série de fatores devem atuar para que a vida surja e cresça em complexidade. Aqui estão alguns dos passos mais importantes: 

Química inorgânica 
A vida necessita de elementos químicos básicos como carbono, oxigênio, hidrogênio, nitrogênio, etc. Mesmo se algum tipo de vida bem exótico existir em um planeta remoto, provavelmente usará elementos químicos semelhantes. Graças às supernovas, isso não é um obstáculo: esses elementos são encontrados por todo o cosmo.

Química orgânica 
Os elementos químicos precisam interagir e formar moléculas inorgânicas simples, como a água, a amônia e o gás carbônico, e moléculas orgânicas simples como o metano e outras. Aqui também não devem existir grandes obstáculos, já que mesmo no
espaço interestelar astrônomos identificaram uma extensa lista de moléculas inorgânicas e orgânicas, muitas delas necessárias para a vida aqui na Terra.

Bioquímica 
Essas moléculas orgânicas precisam encontrar um meio onde possam reagir, criando moléculas cada vez mais complexas, chegando então nas moléculas que caracterizam  a  bioquímica,  como  as  proteínas  e  os ácidos nucleicos. Aqui as coisas
começam a  ficar  complicadas. Como  discutimos, a  água parece  ser  um  ingrediente
crucial para a vida. Certamente, podemos sempre especular que alguns tipos exóticos de bioquímica sejam possíveis na ausência de água.
Como não temos qualquer evidência disso, no momento, as discussões sobre a origem e a existência da vida concentram-se em ambientes com água. Essa condição restringe radicalmente os tipos de corpos celestes que podem abrigar seres vivos. Os planetas precisam estar na chamada zona de habitação da sua estrela, se bem que, como o clima infernal de Vênus e a aridez de  Marte mostram, essa condição não é suficiente para garantir  a existência de vida. (Ou a definição de zona habitável precisa ser refinada).
Luas, por outro lado, mesmo que fora das regiões de habitação, podem ter água líquida devido a um efeito conhecido como aquecimento de maré. Como vimos, Europa, a lua de Júpiter que contém um oceano sob uma crosta de gelo, é um excelente exemplo. Experimentos do tipo Miller-Urey sugerem que os primeiros passos em direção à química da vida, a formação de aminoácidos, são relativamente fáceis de serem dados, contanto que a atmosfera e a superfície do planeta ofereçam as condições apropriadas. Porém, água líquida e os elementos químicos apropriados não garantem sucesso. Para que as reações ocorram, são necessárias concentrações relativamente altas de reagentes.
Fora isso, o planeta tem que estar relativamente calmo, por exemplo, não sendo ativamente bombardeado por asteroides. Sua superfície também deve ser relativamente estável, sem deformações de maré muito intensas e sem erupções vulcânicas de impacto global.

Início da vida 
Dado tudo isso, o próximo passo é o mais misterioso: de alguma forma, reações químicas inanimadas transformaram-se no primeiro ser vivo, um conjunto  de  reações
autossustentáveis capazes de absorver energia do meio ambiente e de se reproduzir.  Como   parte  do  processo,   os  blocos  essenciais  das  moléculas da  vida
escolheram uma orientação espacial específica, a sua quiralidade (propriedade que distingue um objeto de sua imagem especular - nota do blog).

Células procariotas 
Os passos que vão da relativa simplicidade dessa vida primitiva até a complexidade das  proteínas  e  dos  ácidos  nucleicos  pertencentes às  primeiras  células procariotas 
também são obscuros. A uma certa altura, uma membrana protetora feita de gorduras circundou os reagentes, protegendo-os do ambiente externo. Com eficiência crescente, a membrana permitiu que energia e nutrientes entrassem e dejetos saíssem. Nesse meio tempo, o material genético dentro das células levou a reproduções e sofreu mutações, gerando uma diversificação maior. Esse era o mundo dos protozoários.

Células eucariotas
O próximo passo em direção a uma maior complexidade da vida foi a transição das células procariotas às células eucariotas, que levou em torno de dois bilhões de anos. A
hipótese mais aceita atualmente, sugerida pela bióloga Lynn Margulis (a primeira esposa de Carl Sagan), é que os eucariotas surgiram de alianças simbióticas entre diferentes tipos de seres procariotas. Por exemplo, a mitocôndria, a fonte processadora de energia das células modernas, parece ter sido um organismo independente no passado distante que foi ou comido ou absorvido por outro organismo, formando,
de modo ainda desconhecido, um novo organismo.

Vida multicelular
Após o advento das células eucariotas, o próximo grande momento na história da vida foi a transição, aproximadamente três bilhões de anos após o surgimento dos primeiros seres vivos, de criaturas multicelulares. Tal como na transição de procariotas a eucariotas,  a  origem  de seres  multicelulares também é explicada  a partir de alianças 
simbióticas entre seres unicelulares: por um processo de tentativa e erro, seres unicelulares se juntaram ou foram sendo absorvidos para criar novos seres com funções diversificadas.
Entretanto, ainda não se sabe como os tipos diferentes de DNA desses seres foi unificado num só genoma. Uma explicação alternativa, a Teoria Colonial, propõe que seres unicelulares se agruparam em colônias que aos poucos foram evoluindo até tornarem-se seres multicelulares. Embora o debate continue, a Teoria Colonial vem ganhando mais adeptos nos últimos anos.

Vida multicelular complexa 
Muitos cientistas propõem que a diversificação acelerada dos seres vivos que ocorreu por volta de 550 milhões de anos atrás, a chamada "explosão cambriana”, deu-se devido a mudanças no meio ambiente terrestre. As mais importantes foram a oxigena-ção da atmosfera, graças à ação das algas verde-azuis, e o aumento da atividade geológica devido ao movimento das placas tectônicas. Essas placas, que podemos imaginar como sendo pedaços da superfície da Terra ligados como num quebra-cabeça, vão se deslocando aos poucos, ativando a química dos oceanos e da superfície. O movimento tectônico funciona como uma espécie de termostato global, reciclando compostos químicos que ajudam a regular os níveis de gás carbônico, mantendo a temperatura relativamente estável. Sem ele, a água não teria permanecido líquida por bilhões de anos, o que teria dificultado imensamente o desenvolvimento da vida, especialmente o da vida complexa.

Vida inteligente
Após 500 milhões de anos de evolução de seres multicelulares, incluindo várias extinções em massa e mudanças climáticas severas, os primeiros membros do gênero Homo surgiram na África em torno de 4 milhões de anos atrás. A inteligência, como a conhecemos hoje, surgiu há menos de um milhão de anos, estando presente por nem mesmo 0,02% da história da Terra. 

Ponderando cada um dos passos delineados acima, e ao constatar a desolação dos outros planetas do nosso sistema solar, fica difícil entender como é possível afirmar com confiança que a vida deve ser comum no Universo, ou que o Universo é "certo" para a vida. Não há dúvida de que devemos continuar a buscar planetas semelhantes à Terra, como a missão Kepler da NASA está fazendo no momento, e a missão Darwin da Agência Espacial Européia planeja fazer no futuro.


Marcelo Gleiser é astrônomo, doutor em Física e professor de Filosofia Natural do Dartmouth College, EUA. Tem vários livros publicados, dois deles ganhadores do Prêmio Jabuti.

(continua)

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