Obras

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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

SER, OU NADA SER
Wotan jazia adormecido nas montanhas
até que os corvos anunciaram o nascer do dia.³

Como prometido, no curso da série sobre barbárie, no post Civilizarbárie um leitor destacou uma frase¹ e indagou: “Algo como um apocalipse mítico?” Respondo agora. Não, não se trata de um apocalipse mítico. A dúvida procede, mas primeiro é preciso entender o que ele quis dizer com “apocalipse mítico”. Me parece claro que ele traduz apocalipse por “fim do mundo” como, aliás, é entendido na cultura popular, porém, seu real sentido é revelação”, do grego apo kalyptó  descobrir o que está oculto, conhecer, desmascarar, revelar, desvendar. O que está oculto?

Nós herdamos a cultura apocalíptica desde a Idade Média e nunca mais nos livramos dela pela força do cristianismo. Ao longo da história, temos nos embriagado pelas imagens demoníacas,  abismos terrenos, dragões, monstros, espadas flamejantes, hydras, medusas e gente expurgada ardendo nas labaredas infernais. Com estética refinada, estas imagens transformaram o que era medonho em beleza sedutora, dando certa dignidade no contexto da criação. É dessa forma que, segundo nos diz Umberto Eco, tais figuras são ao mesmo tempo temidas e amadas, belas e horrendas, sagradas e profanas  “simbólico-diabólicas”*, mantidas não muito distantes pelo fascínio que exercem, pelo mistério de sua deformidade exuberante. Haveria nelas uma espécie de identificação velada, um reconhecer-se” dissimulado? Quem habita a sua pele?

O que está oculto? O que pode ser tão devastador que prenuncie o fim do mundo?Quem revelará o quê? Sem dúvida, a conotação intrinsicamente religiosa está presente na questão se nos remetermos ao Apocalipse de São João, um dos últimos e mais influentes livros do cânone bíblico. Para alguns reformadores da Igreja, como Lutero, a obra é mítica pela sua narrativa simbólica. Ela teria que ser escrita para que as anteriores tivessem algum sentido. 
Apocalipse traz uma representação na qual nenhum detalhe é poupado, o que permitiu que o imaginário ligado a esse livro bíblico, principalmente aquele que faz referencia ao Juízo Final e ao Inferno, proliferasse nas abadias românicas e nas catedrais góticas, nas iluminuras e nos afrescos durante toda a Idade Média. Essa representação recordava ao fiel, dia após dia, as penas que esperavam pelos pecadores no pós morte.²
Como adendo, numa breve digressão, outro campo que explora à exaustão o desastre final são as obras distópicas da ficção científica. Junte os dois  ficção e religião, a escatologia e a salvação  e eis a fagulha que incendeia os movimentos milenaristas. A ficção se apropria dos antigos mitos e os reveste de uma exterioridade tecnológica que os torna oportunos e palatáveis para uma época como a nossa, plena de tecnicismo e grandes inquietações, exercendo forte influência no psiquismo, no simbólico e no imaginário. A partir destes sublinhados, pode-se inferir qualquer coisa sobre o apocalipse –Juízo Final, acerto de contas, hecatombe planetária, vinda do anticristo e dos quatro cavaleiros ceifadores.

O imaginário popular atira para todos os lados na tentativa de descobrir o que é afinal o apocalipse: O terceiro segredo de Fátima traria essa desafortunada revelação do fim da Igreja; as viradas dos milênios prefigurariam grandes tragédias, segundo os profetas de ocasião. As duas grandes guerras também alimentaram a desesperança de que o fim estava próximo, e até aos discos voadores foram atribuídos sinais do céus anunciadores do fim dos tempos. Bobagens intermináveis.

Não foram poucos os autores que se empenharam ao exame do Apocalipse sob todos as perspectivas  religião, psicanálise, simbolismos, mitos, antropologia, sociologia. De certa forma, todos desembocam no mesmo ponto de origem  o homem! Surpreso? Esperava algo diferente? O apocalipse seria o humano? Por que não? Se você ainda tem dúvida depois de tudo o que leu, principalmente nas últimas semanas, então vamos pensar juntos.

Estou fortemente propenso a pensar que Dante não descreveu o ser humano em sua inteireza na Commedia. Não. Ele concebeu seu Inferno em covas escalonadas e lá despejou toda sorte de malfeitores com suas mazelas, ignomínias e expiações sim, mas creio que impôs limites à sua própria criação, consciente ou não. Commedia não só é a melhor descrição do inferno como também, e principalmente, pela lógica,  da nossa terrível natureza. Talvez ele soubesse que o ser humano é muito pior do que aparenta, e preferiu abrandar sua narrativa a arrepende-se por ir tão mais longe. Ou tão mais fundo. Sabíamos das punições, agora sabemos a razão delas: O apocalipse somos nós, cada um de nós. Repito a frase do post anterior: Depende do que você quer ser. Eis a questão: O que você quer ser?

A revelação está em nós, o encontro com a Besta é o encontro consigo próprio. É quando as máscaras caem, as armaduras se rompem, os escudos se quebram. Quem revela o quê? O homem revela o homem, e só ele pode fazer isso. Não é pela forma das sombras que se encontra a origem da luz? E, quando você pensar que chegou ao mais negro de si mesmo, acredite, não terá chegado nem à metade! Peguei pesado? Diga isso a Freud (sublinhado meu):
Os instintos não se deixam reprimir; e seria ingênuo pensar que, caso sejam reprimidos, deixem de existir. A única coisa que se pode conseguir é fazê-los retroceder do plano consciente ao inconsciente; porém, neste caso, eles se acumulam perigosamente deformados no fundo do espírito, e em sua constante fermentação, dão origem a inquietações nervosas, perturbações e doenças.
Acho que não preciso traduzir “inquietações nervosasperturbações e doenças, preciso? Você tem noção disso. mas quanto de ciência há em sua consciência? Como o título do post foi inspirado em Shakespeare, é com ele que encerro sobre Esta consciência, que faz de todos nós, covardes”. A conversa não termina aqui, vem mais nas próximas semanas, no mesmo tom.


Nota: Sobre o caso do figurão do governo que tentou matar um juiz relatado na edição passada, apesar de nada ser, o sujeito fez escola! Agora foi a vez de um procurador da Fazenda atentar contra a vida de uma juíza que sequer conhecia, atingindo-a de raspão. Aos brados, enalteceu o tal procurador da República como “exemplo a ser seguido”. Se essa é a lógica da insanidade, então há algo de muito podre no reino da mente. Os ventos gelados da tempestade estão soprando forte, mas você só vai senti-la realmente quando respingar em sua vida.

* Do grego sym ballein – unir, ligar; dia ballein – separar, apartar.
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¹ (...) construindo uma civilização que, em algum momento, não se diferenciará mais da barbárie, será a civilizarbárie.
² Raquel F. Parmegiani, O apocalipse e o imaginário do medo nas iluminuras medievais. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo, julho 2011.
³ Wotan - Na mitologia germânica, o poderoso deus das tormentas, equivalente a Odin na mitologia escandinava e Zeus na grega.

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