Obras

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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

POÉTICA DO PESADELO-6


A taxonomia humana nos define como animais da classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, família dos hominídeos, gênero humano, espécie sapiens. Em alguns milhões de anos, o desenvolvimento natural da espécie processou ajustes e adaptações profundas e singulares que nos destacaram substancialmente dos demais seres: habilidade manual (polegar opositor flexível), equilíbrio esquelético e andar ereto são algumas delas, mas é no cérebro a magistral diferença, a estrutura mais impactante que fez com que saíssemos definitivamente das cavernas e da árvore genealógica dos primatas para construirmos o ramo independente da cultura – fala, linguagem, pensamento abstrato, numerosidade, lógica, altruísmo, etc.

Morin levanta questões aparentemente antitéticas: o homem não é constituído por camadas distintas, uma biomaterial e outra psicossocial, mas por uma totalidade biopsicossociológica. Ele rejeita a cisão entre biologia (ciência natural) e antropologia (ciência social), entendendo que a chave da cultura encontra-se na nossa natureza, e a chave da nossa natureza na cultura, ou seja, o homem, desde sempre, “reescreveu-se” continuamente como um ser profundamente original, mas sem um propósito definido: uma unidade na diversidade, a diversidade na unidade.

Se a biologia, com sua concepção “estreita e hermética”, e a antropologia com sua concepção “insular e sobrenatural” são em si insuficientes para descrever o ser, Morin propõe uma teoria aberta baseada na auto-organização e na lógica da complexidade, preferindo chamar de “homem insular”, porque suas conexões não eram consideradas, porém, ele deve ser visto como produto de um sistema que ele chama de policêntrico – nem só biológico nem só cultural, mas um sistema aberto, peninsular

O inventário dos arrazoados todos que foram trazidos até você, a despeito de uma produção gigantesca ter ficado de fora por razões óbvias, em conjunto com a observação atenta do momento atual em todas as esferas, permitem considerações críticas e objetivas, sem julgamentos. Minha visão de mundo depara com uma realidade que confere legitimidade ao proposto aqui e ao olhar dos autores citados, qual seja, o de um estado de natureza em erupção, fora do controle das instituições e sem qualquer perspectiva de uma normalidade minimamente aceitável. Estudos europeus e americanos¹ revelaram o diagnóstico alarmante de que a humanidade está se tornando menos inteligente, se preferir, mais burra, o que significa que uma aluvião de tragédias parece iminente e inevitável. A malha social está se rasgando. Em 1973, Horkheimer já demonstrava essa preocupação:
A razão jamais digeriu verdadeiramente a realidade social, mas hoje está tão completamente expurgada de quaisquer tendências ou preferências específicas que renunciou por fim, até mesmo a tarefa de julgar as ações e o modo de vida do homem. Entregou-se à sanção suprema aos interesses em conflito aos quais nosso mundo parece estar realmente abandonado. O resultado disso é o desterro da razão .
 Antes dele, em 1930, Freud apontava tais sintomas expressando seu temor:
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo.
O homem nunca soube quem ou o que é, e nunca saberá, porque ele é, literalmente, o desdobramento contínuo de uma complexidade sempre inacabada, de subjetividades e contradições internas. Não compreende o significado da vida e desconhece seu lugar e seu papel no jogo cósmico. A religião não lhe dá respostas por ser pura ilusão, e a ciência, quando faz, levanta novas indagações. Entre rezar e pensar, entre ilusão e real, o que você acha que ele prefere? O que você prefere?

O homem não suporta e não consegue sublimar a orfandade, o desamparo e a angustiante miséria existencial. Suas muitas marcas de nascença se transformaram em chagas profundas que nunca cicatrizaram, determinando os traços constitutivos do ser: idiossincrático, heterônomo, amoral e aético; irreflexivo, perverso, covarde, infantil e ressentido. Desejante, fraturado, perdido na solidão e no silêncio, um grande vazio dentro de outro ainda maior. Anthropos sapiens que leva nas costas um cadáver postergado pelas savanas em meio a uma pletora de signos.

A barbárie que nos ameaça não vem de fora, vem de dentro, com as faces da Quimera – violenta e traiçoeira – e não veremos Belerofonte cavalgando Pégasos vindo nos salvar. Apocalipse? Talvez, depende do que você quer ser. Não entendeu? Quando um médico que, em princípio, se propõe a salvar vidas, por convicções políticas extremadas aplaude um alto membro do Governo que confessa tentar matar um ministro do Judiciário, então a barbárie já começou. Isto não é ficção, saiu nas redes. “Nada do que é humano me surpreende”(Terentius). Entendeu agora? Semana que vem tratamos disso.

Um comentário:

  1. "O homem nunca soube quem ou o que é, e nunca saberá, porque ele é, literalmente, o desdobramento contínuo de uma complexidade sempre inacabada, de subjetividades e contradições internas. Não compreende o significado da vida e desconhece seu lugar e seu papel no jogo cósmico. A religião não lhe dá respostas por ser pura ilusão, e a ciência, quando faz, levanta novas indagações. Entre rezar e pensar, entre ilusão e real, o que você acha que ele prefere? O que você prefere?"

    Deveras, seu Reis!

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