Obras

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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

CONSCIÊNCIA COM CIÊNCIA
Um exército de cervos liderado por um leão

é muito mais assustador que um exército
de leões comandado por um cervo.
Plutarco (46 d.C. - 120)

Há pouco mais de dez anos, mais exatamente em agosto de 2009, lançávamos nosso A Desconstrução de um Mito, cujo subtítulo, proposto pelo coautor Rodrigues, Porque os discos voadores podem não existir, denotava postura cautelosa, deixando em aberto a possibilidade de estarmos errados. Rodrigues mantém a crença de que um irrisório percentual de fenômenos possa ter uma explicação dessa natureza, enquanto que, no meu entender, se houver alguma resposta, ela virá de outras fontes. Por que estou tocando messe assunto? Porque, passada uma década, a obra ainda incomoda o leitor, fazendo-o balançar em suas crenças na pluralidade de mundos habitados, visitantes extraterrestres e todas as ilusões que integram o universo supranatural. Naturalmente, Desconstrução desperta o repúdio dos ufólogos.

Sobre isso, recentemente um leitor manifestou-se a Rodrigues deveras perturbado com a leitura da obra. Em mensagem pessoal, escreveu: O livro é muito bom, mas dá uma sensação terrível de que estivemos perdendo tempo nos dedicando a algo que só existe em nossas mentes. Sensação terrível é emblemático, por mostrar que este leitor tem consciência da magnitude do problema, e que está inclinado a reorganizar sua visão sobre o tema. Daí o post ter a participação do colega, e foi necessário ser um pouco mais extenso que o habitual; pedimos compreensão, pois sua leitura é fundamental.


Quando colocamos na mesa o que possa ser contrário às nossas crenças e preferências, estamos usando um método eficaz para combate de nosso viés de confirmação. Um viés de confirmação é preferir, durante décadas, com afinco e de maneira heroica, a hipótese de que Óvnis sejam, necessariamente, “naves extraterrestres”, e quando se analisa e discute casos ufológicos, faz-se de tudo para que a crença seja confirmada. Neste caso, não se busca o que realmente possa se aproximar da verdade, mas sim, luta-se pela verdade desejada, – a autoverdade.

Foi este nosso objetivo na obra: O que pode ser contrário à existência do próprio fenômeno, o sentido inverso daquilo em que ufólogos  acreditam e a incipiente ideia de sua origem, tudo exemplificado pelo comportamento dos próprios pesquisadores. Ou seja, apresentamos o contraditório para que houvesse um mínimo de seriedade, bom senso e imparcialidade. Se não for assim, não se faz ciência, ainda mais em um ambiente onde imperam e proliferam delírios, falácias, exotismos, fantasia, farsa, fabulações, fanatismo e conspiranoias”, e onde também não se faz o menor esforço para acabar coma a pecha de pseudo ciência. Um exemplo disso vem a seguir.

Dias atrás, certo ufólogo desandou a promover palestras falsamente científicas anunciando “surpreendentes revelações” sobre Marte, a partir da sua interpretação das fotos obtidas pela NASA: fósseis alienígenas, formações rochosas insinuando ruínas de alguma civilização tecnologicamente avançada(?). Quem leu os posts Fanatismo doentio e Fanatismo de pedra perceberá que o sujeito se encaixa em um destes estágios, quiçá no segundo. E mais, o texto abaixo (na íntegra e com os erros originais) é parte da divulgação dos eventos anunciados (sublinhado nosso):
Mas as grandes revelações desse evento, mais uma vez documentadas nas fotos oficiais da agência espacial, que serão mostradas estão associadas as descobertas feitas pelo conferencista sobre o que esta acontecendo nesse momento no Planeta Vermelho, e o que foi descoberto sobre a vida no planeta na atualidade!!!
O palestrante está a par do que ocorre em Marte neste momento! O palestrante acusa (desde sempre) governos e instituições de acobertamento e conspirações de silêncio e desinformação e outros desvarios. O palestrante tira conclusões totalmente descabidas sem o menor pudor e sem conhecimento técnico sobre qualquer coisa. O palestrante faz ilações estapafúrdias e desconexas, ligando a possível existência de vida microbiana há bilhões de anos a “civilizações avançadas”. O palestrante deve ter ficado exposto a altas doses de Arquivo X” e outras ficções, e agora vive um permanente transtorno dissociativo da realidade. Enfim, o palestrante é só mais um aventureiro, desinformado e despreparado, incapaz de apreender as questões mais complexas que vão muito além do seu precário perímetro intelectual.


Um procedimento totalmente equivocado é o de interpretar de forma deturpada as declarações dos homens de ciência para atender interesses escusos. Há poucos dias, um site de ufologia noticiou que o físico Michio Kaku teria dado declarações em favor da hipótese extraterrestre dos Óvnis. Quando, no entanto, se comparam trechos da sua manifestação, evidentemente pinçados de maneira tendenciosa, a notícia passa a ser visivelmente contraditória, e chega a ser incrível que seu redator não tenha percebido o absurdo do raciocínio, a lógica inversa do cientista: “É dos militares provar que os UFOS não são dronesÉ quase certo que sua consciência sem ciência  –  a do redator – não tenha percebido mesmo.

Só a partir dos dados coletados pelas experiências individuais e coletivas é que podemos inferir outras possibilidades. Nesse sentido, Edgar Morin, em Ciência com Consciência, propõe alguns imperativos que podem ajudar aos leitores a refletirem sobre um novo modelo de pensamento: Conhecer para conhecer, que deve triunfar, para o conhecimento, sobre todas as proibições e tabus que o limitam. Ademais, os princípios clássicos de explicação indicam que a complexidade dos fenômenos se esclarece a partir de preceitos simples  separação, redução – retirando o observador da observação. A experiência deve ser objetiva, independente do observador. Ao observar um objeto, o sujeito se insere na linguagem deste objeto, passando a fazer parte dele como sua extensão.

Se o nosso conhecimento sobre este objeto é nulo, nossa interpretação será subjetiva, portanto, igualmente nula. É o caso citado acima, uma consciência sem ciência que traz consequência: O sujeito fala sem ter a mundivisão do problema, a visão crítica do mundo, o olhar grande angular na análise profunda em busca da verdade pelo conhecimento e do conhecimento pela verdade.  Ainda Morin:
Vemos que o próprio progresso do conhecimento científico exige que o observador se inclua em sua observação, o que concebe, em sua concepção, que o sujeito se reintroduza de forma autocrítica e autorreflexiva em seu conhecimento dos objetos.
Com raríssimas exceções, autocrítica e autorreflexão inexistem. Ainda que a ciência tenha um lado positivo e um negativo, essa dicotomia deve acabar para dar lugar à compreensão da ambivalência e da complexidade que se situam no cene da ciência. Os pesquisadores do passado eram amadores, simultaneamente filósofos e cientistas. Hoje, a exigência do saber se concentra na transdisciplinaridade. O problema supõe não só a reforma das estruturas do próprio conhecimento como também da consciência. De nada adianta a ciência avançar em várias frentes se a consciência estanca onde lhe é confortável e conveniente. Uma consciência parada no passado não tem como alcançar o presente.

Nesse aspecto nós jamais nos acomodamos com o saber adquirido porque buscamos, incansavelmente, chegar ao âmago das questões até onde é possível chegar ou nossas aptidões permitirem. Seria cômodo fincar nosso discurso em algum pedaço de terra à sombra e não ter de passar pela sensação terrível de reformular todo o pensamento à revelia. Preferimos acompanhar a correnteza do mundo a beber de águas paradas. Mesmo sendo clichê, o conhecimento é inegociável. E a frase de Marx vem sob medida nesse contexto: “Se a aparência e a essência fossem a mesma coisa, a Ciência seria inútil”. Alguma dúvida?

Quais são os limites da nossa consciência, do conhecimento, da racionalidade? Até onde podemos chegar? Jamais saberemos se não tentarmos avançar mais e mais. Todo o esforço do saber só terá utilidade se pudermos abarcar os fenômenos e os objetos em sua integralidade e complexidade. Um desafio colossal sem garantia de êxito. Nenhuma resposta simplista será satisfatória. Como dar conta da do mundo e da vida ambivalente seguindo por uma única via? O que é certo hoje poderá não sê-lo amanhã. Só há dois caminhos possíveis: Ou afundamos no lodaçal da obscuridade e ignorância ou nos conduzimos pelas luzes da razão. Já passou da hora de olharmos para o que não está lá e enxergar o que está aqui.

Em outra obra, Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, Morin expõe toda a sua experiência nesse campo ao afirmar que o conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão, seu calcanhar de Aquiles: “O maior erro é subestimar o problema do erro; a maior ilusão é subestimar o problema da ilusão. Reconhecer ambos é ainda mais difícil, porque ambos parasitam a mente e não se reconhecem como tais”. Ideal seria transcrever toda essa obra dado o volume de conceitos e proposições que o autor consegue trazer em tão poucas páginas. Não é à toa que o núcleo do seu pensamento repousa na complexidade - do mundo, da vida, do homem.  Talvez uma frase sua possa sintetizar o coração do problema: “A projeção de nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos dos erros e das ilusões”.

Eis o ponto cardeal na análise de qualquer tema: reconhecer o erro e a ilusão, adotar o senso crítico e o espírito cético como balizadores de um conduta maura pautada pela sobriedade dentro da própria definição de ciência: conhecimento. Firmar posturas inflexíveis não é inteligente. Crítica e ceticismo são princípios imprescindíveis no pensamento científico. Quando um dos lados se coloca irredutível nas suas crenças, portanto subjetividades, não há entendimento, só debate estéril em tom de polêmica.

Quem tem conhecimento tem autonomia, projeto, norte, ética, critérios, estímulos, atitude, repertório, respostas, ideias. Quem não tem vagueia pelo limbo. Quem tem o saber tem guarda-chuva, quem não tem fica molhado. Quem tem conteúdo produz, transforma, liberta, renova, encanta, multiplica, mas incomoda, quando provoca sensações terríveis.

2 comentários:

  1. Sempre encontra aqui um excelente texto!

    Abraço, senhor Reis.

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  2. Muito boa a reflexão, estou lendo a desconstrução de um mito. Sou dono do canal joão marcelo do youtube. Caso posso me adicionar pelo zap zap agradeço, 32 99920-1967

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