Obras

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quarta-feira, 13 de maio de 2020

INVASÃO ALIENÍGENA


Finalmente aconteceu o tão acalentado sonho dos ufólogos, dos fanáticos, dos tolos, crédulos, esotéricos e profetas do apocalipse: o mundo sob invasão alienígena! Atenção, eu disse alienígena e não extraterrestre, é diferente. Do latim alien - estranho, de fora, alheio. Sim, estamos sob ataque aéreo tomando o planeta de assalto. Sim, são seres malignos que invadem nossos corpos, como em Invasores de Corpos, destruindo-os, matando-os, exceto algumas pessoas que, por razões ainda não muito claras, sobrevivem, tipo heróis da resistência. Essas criaturas são esféricas tais como descritas na casuística ufológica, com antenas ou “chifres” como os entes do mal, microscópicas lanças venenosas e letais. Não era a invasão que queriam, mas a outra não terão. 

É claro que você entende que a comparação não é para fazer graça, ainda mais em um momento tão estranho quanto o mundo em que vivemos. É só um pretexto para engatar o assunto de hoje. Se fôssemos lembrar outa obra cinematográfica, estamos quase que testemunhando O dia em que a Terra parou, só que ao invés de ficção, é realidade, dura e cruel. Os estragos que esses organismos estão fazendo são pavorosos, e estamos só começando a conhecer seu poder de devastação. Outros danos e possíveis sequelas estão por vir.

Sua origem é incerta, primeiro falou-se de contaminação animal, depois, de um acidente (ou não) em um laboratório de pesquisa viral, daí descambou para todo tipo de conspiranoia - conluio de instituições oficiais e imprensa mundial para instaurar uma nova ordem planetária, estratégia chinesa de dominação econômica para abater o capitalismo e o imperialismo americano e fazer ressurgir o comunismo, farsa, histeria, fantasia, exagero e outras piruetas. Não importa, fato é que vieram para ficar. Melhor seria que fosse mesmo uma invasão alienígena.

E há ainda outra invasão em curso, dessa vez dentro de casa, a dos profissionais de saúde - epidemiologistas, infectologistas, virologista, psicólogos, que se esforçam para entender e esclarecer a coisa toda. Em paralelo, cientistas políticos, economistas, sociólogos, futurólogos e políticos, estes sem a menor noção do que estão a dizer. Os primeiros baseiam-se em fatos, dados técnicos, gráficos, números, observações, UTIs lotadas, falta de leitos, vida que se esvai, companheiro que se vai, covas sem fim, quarentena sem fim, plantão sem fim, problemas sem fim. Os segundos, em projeções, abstrações, tendências e especulações, recorrendo à história pregressa das semelhanças. Nenhum deles aposta que tudo vai se acabar na quarta-feira, porque não é carnaval, mas tem gosto de cinza. São dois mundos por ora antagônicos, versão moderna de Guerra dos Mundos. Que mundos? 

De um lado, ciência e consciência, de outro, negligência, imprudência, incompetência e ausência. De um lado dedicação e tensão, de outro inação, omissão e disrupção. De um lado, dor pela desgraça, de outro rancor com ameaça, trapaça, mordaça. De um lado, escolha de Sofia, de outro, luto da Ética. De um lado, agonia interminável, de outro, ironia irresponsável. De um lado, vítimas de um mal sinistro, profundo e atroz, de outro, vítimas de um mau ministro, iracundo e sem voz. De um lado, máscara, morfina e medo, de outro, Hermès, Prada, Chivas, Rolex, Bulgari. Indecente e criminosa discrepância. No meio desse vácuo abismal, atarantados iguais e desiguais se misturam na fila do banco, da farmácia, do feijão, do caixão, literalmente Perdidos no Espaço. Os alienígenas não vieram só para devorar nossas entranhas, mas para nos transformar por fora, mostrar o que somos de fato. A miséria vai muito além da matéria, vai Além da Imaginação.

O bom e velho Raul Seixas cantava profetizando, 40 anos atrás: “As pessoas do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa” ... “o empregado não saiu para o trabalho” ... “a dona de casa não saiu para comprar pão” ... “o guarda não saiu para prender”... “o ladrão não saiu para roubar”. Soa mais leve que a poesia de Murilo Mendes, cruciante, bela mesmo assim, O homem, a luta e a eternidade:
Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo,
vertigem,
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo para se definir
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno para te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!
Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição.
E não haverá mais tempo.

Um comentário:

  1. Este, achei mais leve que o "Errantes por natureza". Confesso que me identifico mais com abordagens mais descontraídas (e não menos sérias por isso) como esta. Tenho evitado os noticiários que conseguem dramatizar ainda mais o drama por que estamos passando. Mas ter acesso a um recorte muito bem estruturado de tudo o que está se sucedendo foi ótimo. Obrigada por me atualizar da pandemia com sabedoria e leveza.

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