Obras

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quarta-feira, 27 de maio de 2020

Combustão espontânea



COMBUSTÃO  ESPONTÂNEA 

Dê-me um fósforo e eu começo uma revolução! Ouvi essa fala em algum lugar, em algum momento, um filme talvez... não sei, mas não importa. Fato é que ela traduz com perfeição este momento tão singular que nem estranho é mais, é sinistro mesmo. Tenho escrito com (quase) obsessiva frequência sobre a natureza humana e a condição humana, duas coisas muito diferentes mas que, sob certa conjuntura, se cruzam, se chocam, e, ao se chocarem, provocam faíscas, e quando fagulhas caem em terreno encharcado de substância volátil a combustão é imediata. Basta uma faísca. Eu poderia listar vários posts em que tratei disso muito antes dessa pandemia, e a cada novo texto a situação parece piorar. Não só parece como piora mesmo.

Antes de tocar no coração do assunto (e falo de coração mesmo), quero lembrar algumas palavras de Jung a respeito dessa atmosfera de tensão que vivemos, na qual "forças demoníacas antes acorrentadas nas profundezas da psique lançam-se sobre as almas de milhões". Jung dizia que essas forças "aguardam em estado latente o momento em que condições políticas, sociais e econômicas façam ressurgir comportamentos primitivos e arcaicos" (o itálico é meu). E disse mais, que "a invasão da consciência por esses fundos psíquicos inconscientes, que submergem a razão e induzem a atitudes anormais, configura o que em psicopatologia se denomina psicose coletiva". Eu acrescentaria "comportamentos primitivos extremados". Agora olhe nos meus olhos e diga se ele não tem razão, diga se o que você vê pela sua janela o desmente. Como exemplo, darei um depoimento pessoal. Hora de falar ao coração.

Doeu-me fundo na alma quando, dias atrás, recebi mensagem de um ente muito querido que, a meu ver - e não tenho outra explicação - soou como uma provocação política gratuita, descabida e desrespeitosa. Pensei em ignorar, deletar a mensagem, mas optei por uma réplica educada. No entanto, as palavras foram num crescendo mais ardente, de ambas as partes, até que resolvi parar. Por pouco não perdi meu centro, por muito pouco não abandonei a sensatez. É sábio calar quando todos estão gritando. Não foi difícil identificar a matriz infantil daquela provocação, porque toda provocação é filha da imaturidade, que produz e expõe opiniões intestinais, irracionais, desinformadas e indefensáveis perante fatos concretos.

Me senti muito mal. Primeiro, não havia qualquer justificativa para o incitamento, ainda mais por quem o fez; segundo, por ter retrucado, porque não me calo quando estou seguro da meu poder de argumentar, mas, anda assim, me contive, coisa rara de acontecer, e terceiro, por baixar o nível da discussão. Já houvera um precedente de outra natureza que me causara profunda tristeza e mal-estar, e não queria passar por isso novamente. Se não sabe física, não discuta quântica. Vale lembrar ainda que toda provocação é, em última análise, negação da realidade para além do campo psicológico.

É esse o clima que recobre o mundo, que envolve as pessoas, que eleva a temperatura do mais simples diálogo, ferindo o espírito. Senti isso no seio familiar, o que é ainda mais doloroso. Não há um único analista social que não vislumbre um dia seguinte bastante sombrio, para dizer o mínimo. Esse estranhamento/enfrentamento atinge todos os estratos sociais e todas as esferas da vida pública, com relevo para a política como carro-chefe do debate transnacional.


Do meu posto de observação não vejo solução, e se há, ela deve partir do sujeito, do seu patrimônio moral e ético, que visivelmente se deteriora a cada dia; deve partir das instituições, que claudicam no cumprimento do dever porque são constituídas por sujeitos; deve partir do corpo social, igualmente formado por indivíduos, e dada sua diversidade e heterogeneidade, é praticamente inviável qualquer iniciativa ordenadora. Trocando em miúdos, estamos a dois passos não do paraíso, como diz a música, mas do inferno, e para isso basta só um fósforo. Ou ma fagulha.


Sou francamente otimista no que dependa das minhas ações e meus princípios, mas totalmente temeroso a respeito do outro, próximo ou distante. Por quê? Porque eu estou consciente da minha natureza e ciente da minha condição. Do outro, desconheço tudo. Sei até aonde posso ir, mas não sei se sei até aonde não posso ir. 

Não faço ideia de como será esse tal "novo normal" pós-pandêmico, só sei que não quero viver num mundo em que o distanciamento físico seja regra, que uma palavra possa ser o estopim de uma guerra, que um abraço me sentencie à morte ou que uma conversa à mesa se transforme numa carnificina verbal. Quero viver o que me resta viver cercado de afeição, não de fricção. Não pretendo riscar um fósforo, a não ser para acender meu candeeiro e seguir adiante. Cada um que se queime sozinho, mas acho que você percebeu a sutileza da última frase do parágrafo anterior. Com ou sem a tragédia que dizima milhares e corre insaciável mundo afora, o ser humano é o agente ainda mais letal, e seguirá sendo o que sempre foi - um animal, humano.

O homem não conhece o homem. Ele poderia ser maestro de si mesmo se soubesse ler a partitura. Como não sabe, é só um tocador de tuba. Não, não sou um visionário apocalíptico nem derrotista, muito menos negador das virtudes humanas. Elas existem, só que a realidade não me dá alternativas para pensar o contrário. Quem vê o mundo de modo diferente disso corre o risco de estar vivendo numa bolha de ilusão.

Estou errado? Pode ser, então quem tiver argumentos contrários solidamente fincados na ontologia do ser, isto é, na sua essência e não na exterioridade, na superfície, que se manifeste. Enquanto espero, tenho a humanidade no radar mapeando cada movimento, estudando cada gesto, sentindo a pulsação. Ela caminha trôpega em campo minado, e isso é desastre anunciado. Nosso velho conhecido Zygmunt Bauman dizia que somos indivíduos frágeis conduzindo nossas vidas numa realidade porosa, deslizando sobre uma fina camada de gelo. Se esta não for a chave que nos abre as portas da percepção para a realidade do mundo, então não sei qual será.

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