Obras

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sexta-feira, 8 de maio de 2020

ERRANTES POR NATUREZA

Enquanto saboreava um sanduíche observando as borbulhas do refrigerante subirem à tona, a tela do computador exibia uma miríade de pontos luminescentes vagando no fundo negro do espaço. Estranha semelhança com nós humanos: de um lado, bolinhas vazias subindo apressadas pelo líquido em direção à superfície para estourar em no nada, sem notarem o nutriente que as mantém; de outro, corpos que se distanciam e se isolam cada vez mais num balé caótico em direção a lugar nenhum, indiferentes à beleza do meio que os cercam. Curiosa semelhança a ver com o assunto de hoje.

Durante muito tempo, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman lançou e defendeu a ideia de “sociedade líquida”, expressão que se consagrou e se tornou âncora em muitos estudos, trabalhos e discussões acadêmicas e não acadêmicas. Esse conceito de liquidez se desmembrou em amor líquido, medo líquido, tempo líquido, modernidade líquida, mundo líquido, demarcando um movimento social de resiliência e adaptação às mudanças cada vez mais vorazes e incontornáveis que o mundo patrocina. É a civilização se amoldando às contingências que ela mesma elabora. Até aí, nenhuma novidade, quem é da área e acompanhou a trajetória de Bauman há de concordar, quem não é, mas vive antenado, certamente já teve em mãos um de seus livros ou assistiu debates a respeito.

Ocorre que essa transfiguração caleidoscópica do mundo está delineando um novo padrão de sociedade, onde a pandemia que nos assola é um acontecimento fortuito que se torna apenas um fator a mais nessa equação, não sendo o principal. O que coloca esse corpo social em ebulição é o indivíduo e suas ações, seu aparelhamento psíquico, seu não lugar no ilusório lugar de um grupo. Esse novo perfil começa a se deslocar do estado líquido para o gasoso, volátil, instável, efêmero. Nesse contexto, as partículas, vaporosas, perdem seu elemento agregador, tornando-se aleatórias.

Volátil, do latim volatilisvolare - que pode voar, por extensão, disperso, errático, inconstante, mas é entendido também como aquilo que evapora facilmente. Volátil nas ações de curto prazo, no imediatismo compulsivo, na premência de respostas, na superposição de agendas, em prejuízo do tempo como vetor de qualificação, equilíbrio e consolidação de resultados e maturação destas mesmas ações. Volátil pela visão de curto alcance, ou falta dela, ausência de planejamento duradouro e reflexão crítica. Volátil pela falta de informação ou excesso de má informação em um mar de desinformação. Volátil nas emoções, relações, sentimentos e valores. Volatilidade está associada a outros aspectos - efemeridade e voracidade, mas não só. Aí as areias do tempo apagam as pegadas antes que o próximo passo seja dado, e a história não vai perdoar. 

Esse padrão efervescente de humanidade está calcado na superficialidade, na ausência, no cinismo, na futilidade e artificialidade; o sujeito literalmente dissolvido na massa disforme, na multidão de solitários, no coletivo espectral de anônimos. Solipsismo compartilhado. Já falei disso aqui, óbvia menção às redes sociais, hoje principal canal de “integração ideológica”, quando não seu condutor: Se os membros da comunidade estão em sintonia com uma determinada proposta, o grupo se fortalece, mas se houver uma voz dissonante ela será bloqueada, excluída, deletada. Não, a rede não é um mau negócio, ruim é o que se faz dela quando o interesse privado se sobrepõe ao público, ao ético comum. Por quê?

Porque o dado perturbador é que essa volatilidade é descontrolada e irrefreável, como todo elemento gasoso. Volatilidade, efemeridade e voracidade formam um quarto elemento, por si autodestruidor - vulnerabilidade. Juntas, elas alienam e entorpecem a consciência para negar o real. Segundo o sociólogo francês Jean Baudrillard, massa não é um conceito, mas uma noção fluida, viscosa, um conjunto vazio de partículas individuais, de resíduos do social e de impulsos indiretos: “opaca nebulosa cuja densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes para finalmente desabar sobre seu próprio peso. Buraco negro em que o social se precipita”. A massa é heterogênea, entrópica, disruptiva (como pensar em coesão e unidade?), torpedeada por estímulos, provocações, solicitações e signos, constituída por sujeitos de pensamentos fragmentados, míopes e atomizados. A bolha gasosa se expandirá até que sua termodinâmica a faça explodir. Ou implodir.

Mencionei a pandemia, e sendo um tema presente e premente, cabe retomar o exame. Qual o efeito que esse distanciamento/isolamento social poderá causar no que os especialistas chamam de “novo normal”? Ora, se eles mesmos se cercam de incógnitas, eu não me atreveria a um exercício de futurologia, mas me dou sim o direito de propor algumas possibilidades. O mundo pós-pandemia pode desencadear, num primeiro momento, o desejo do reencontro de amigos e familiares, reuniões, festas, jantares, comemorações, passeios e viagens, ainda que o risco de contágio e aumento da curva de contaminação, internação e morte volte a crescer. Seria uma volta à normalidade com outros padrões de comportamento. No contraponto, a consolidação do home office, as aulas online, as reuniões não presenciais, lives, fortalecimento do comércio eletrônico e outras atividades remotas servidas pela revolução digital parecem conduzir à atomização social preconizada por Baudrillard. É difícil antecipar os danos colaterais em qualquer um destes cenários. Que o mundo não será mais o mesmo todos parecem concordar, o problema é esse estranho e incômodo “não será mais o mesmo”.

Fato é que a mudança já começou e é irreversível: a presença do corpo já não é tão imprescindível, o face-a-face perdeu relevância. O relevo do real tornou-se achatado pelas telas do virtual; só a imagem importa, impulsionada pelo motor veloz e voraz do consumo. Quando quantidade passa a valer mais que qualidade, o risco é incalculável e inexorável; os transtornos psíquicos e sociais se multiplicam, a memória perde a memória, a consciência perde a consciência, a cultura perde a cultura. Não é pouco. A mobilidade do indivíduo tornou-se outra, deu lugar à inércia crescente - a mobilidade no mesmo lugarÉ de se notar que há 100 anos o filósofo e crítico literário Walter Benjamin já se preocupava com a mudança de patamar da experiência humana, pela via da tecnologia, entre a atividade coletiva e o fortalecimento da vivência da solidão. Os efeitos dessa mudança estão se verificando no cerne da pandemia.

Um estudo militar americano do final dos anos 1980 já analisava as consequências do avanço tecnológico que se instalava no cotidiano, e descrevia o mundo como volátil, incerto, complexo e ambíguo. Poderia parecer uma visão profética do quadro atual, mas não, é uma projeção linear de perspectiva histórica. A perda do emprego, por exemplo, um marcador social e econômico referencial da própria existência, o porto seguro, é uma das consequências, quiçá a mais grave, de onde deriva o impasse do capitalismo: como ele pode sobreviver se descarta empregos mais rapidamente do que os consegue criar? A economia mão pode girar com base em aposta e risco, incerteza e achismo, pois é frágil demais e desconhece todas as variáveis do “mercado”. Como as grandes corporações vão gerir seus negócios globalmente e as pequenas, localmente? Como a geopolítica vai redefinir e administrar suas “fronteiras sociais”? O “custo-saúde” vai se pautar pela tecnologia de ponta ou pelo paciente na outra ponta? Quais valores vão permanecer, quais serão descartados e quais surgirão dominantes? O que será feito da Educação, da Política, da Cultura, da Economia, da Segurança. da Justiça? A Ciência terá novo statuCiência é caminho, construção, ruptura, remoção de obstáculos. Qual será a sua ética no “pós-humano”, técnicos montando cyborgs em larga escala ou médicos salvando a espécie em tendas de campanha? 

Se o indivíduo perde seu valor funcional, se se torna “invisível” aos olhos do Estado, pulverizado e desenraizado do tronco social, se deixa de ter um “rosto” para ser mera estatística, por que então se investe tanto em sistemas de geolocalização, em níveis de valoração pessoal, em programas de reconhecimento facial e mapeamento de costumes e comportamento? “Eu sei quem você é e o que fez no verão passado” não é mais ficção, é vigilância explícita, de todos para todos, consensualmente. Big Brother é o Big Data - informação é poder. Liberdade cerceada é falsa liberdade, ou seja, privacidade e segurança já eram. Se a rede é sua única companhia, saiba que você só é mais um  no rebanho.


O mundo real requere análise e visão realistas e não escapistas, exige leitura objetiva e não subjetiva, porque opera com fatos e princípios físicos, e não com ilações e metafísica. Entretanto, se o horizonte está turvado pelas incertezas, pela impaciência, voracidade, volatilidade, indefinições, impermanência, ambiguidades, ambivalência, transitoriedade, complexidades e contradições, qual direção seguir? Numa existência errática desde o nascedouro, não existe norte quando se é partícula cega debatendo-se no vazio.

Pandora sumiu, está em algum lugar incerto e não sabido, e deixou a caixa vazia.

Um comentário:

  1. O início do texto já me capturou, porque adoro quando temáticas corriqueiras viram o impulso inicial de uma reflexão. Depois parece que me colocaram em uma aula de alguma disciplina do ensino superior e me deram um banho de informação e sabedoria. A-do-rei como sempre.

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