Obras

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sexta-feira, 1 de maio de 2020

INIMIGA ÍNTIMA

 Sou tão íntima que sei tudo sobre você, te acompanho desde o nascimento e vou ficar até o último dos seus dias. Por mais que se esforce, jamais se verá livre de mim. Estou em todos os lugares. o tempo todo. Vou repetir: em todos os lugares o tempo todo, nas escolas, no esporte, na ciência, na política, na família, nas ruas, nas religiões, até o Papa fala de mim às vezes, de forma velada e a contragosto, mas fala.

Vou brincar de forca com você, aquele joguinho de descobrir uma palavra adivinhando as letras que a compõem, quem sabe isso revele quem sou. Presumo que queira começar com a letra A, como todo mundo. Acertou, tenho-a duas vezes, a de amor, de atenção, de altruísmo, mas não se iluda, não tenho nenhuma dessas virtudes. É a primeira pista. Talvez agora você peça a letra E, de esperança, ética, educação ou estudo, coisas com as quais definitivamente não tenho nenhuma afinidade, e aí você errou, então estou desenhando a sua cabeça na forca. Outra pista dada. Quer tentar o I? Essa é fácil, acertou novamente, e também ela se repete no meu nome. Só restam duas vogais, O e U, qual vai ser? Vou dar um tempo para você pensar.

Eu não conto a história do mundo e sim a da humanidade, afinal cheguei junto com os homens, nasci com eles, nasci deles, e agora eles me pertencem, embora pensem o contrário. Sim, você me pertence também. Sou íntima de todos os senhores do mundo, do mais inteligente ao mais tolo - imperadores, reis, rainhas, tiranos, sacerdotes, fidalgos, autoridades, soberanos, líderes, generais, guerreiros e governantes. Convivo com operários, banqueiros, prostitutas, ladrões, canalhas, patifes, damas e cavalheiros. Frequento bordéis, hotéis, palácios, condomínios, gabinetes, coberturas e favelas. Flertam comigo doutores, literatos, artistas, eruditos, cientistas e santos e filósofos; os sábios não me negam, reverenciam-me com diálogos permanentes. Porque são sábios. 

Escolheu a próxima letra? Quer partir para as consoantes? Que tal M, ou R, S talvez... Vai tentar T? Errou de novo, e agora traço seu tronco na forca. Você disse C? Boa pedida, acertou! E a F, pode ser? Você não sabe se estou te induzindo ao erro ou ao acerto, não é mesmo? Não tem como saber porque, de qualquer modo, vou vencer, como sempre, mesmo que você acerte todas as letras ou pronuncie meu nome de primeira. Aceita o desafio de continuar ou vai desistir?

Eu participei do começo de todas as guerras, todos os conflitos e todas as batalhas, mas não testemunhei seu fim. Eu estou no ato de você abrir um livro, e posso também ser a causa de você fechá-lo. Estou ao seu lado na sala de aula, na biblioteca, na consulta médica e no vestibular. Estou presente na conversa de bar, na discussão política, no debate acadêmico e até no jogo de futebol, acredita? Às vezes apareço de surpresa à mesa do jantar, na hora de discutir a relação ou no meio de uma reunião de trabalho. Posso ser a causa da vida e da morte, e de muito do que acontece entre uma e outra. Não facilito as coisas, a vida é complexa, ambivalente, caótica e distópica.

Você não pode me tocar, não pode me ver, nem falar comigo, até porque eu não te darei ouvidos. Você nada sabe sobre mim, eu sou uma esfinge, inviolável, e por mais que queira saber, jamais conseguirá, porque quando me decifrar, já não estou mais lá, terei mudado de lugar. Eu também nada sei sobre mim, nunca poderei saber, não tenho como saber. Um famoso poeta português escreveu que eu e a inocência é que somos felizes, mas não o sabemos. Um filósofo disse que sou uma benção dos deuses. Eles têm razão, mas porque só olharam para uma das minhas três faces, a mais bela e mais jovem. A segunda estampa desperta compreensão e tolerância, mas a terceira, essa é tão terrível que me deixa poderosa a ponto de destruir o mundo num rompante de ira. Tenha cuidado, convém não me provocar, sou temperamental, diabólica, imprevisível, explosiva, traiçoeira, indomável, corrosiva, impulsiva, camaleônica, instável e ressentida. Sou pouco dada a conversa, na verdade, entendimento comigo é zero, e embora ninguém me queira por perto, cresce o número de adeptos. Como explicar?

Já descobriu quem sou? Se sim, muito bem, darei uma trégua e voltarei amanhã, caso contrário, tarde demais, a brincadeira acabou e seu corpo já está pendurado na forca. Eu avisei. Dei várias pistas e confundi deliberadamente, sem mentir, para te fazer pensar, como fazem o filósofo e o sábio, mesmo que não seja um deles. Vale a pena o esforço. Acho sugestivo lembrar Clarice Lispector: Decifra-me, mas não me concluas, eu posso te surpreender.

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