Obras

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sexta-feira, 22 de maio de 2020

LAVRA OU PALAVRA?

Uma entrevista* com a cientista política francesa Karoline Postel-Vinay, do Centre d'Etudes des Relations Internationales, de Paris, chamou-me a atenção para o ponto central que trata das incertezas científicas diante do cenário pandêmico mundial. Por ser longa, não vou reproduzi-la, apenas extrair algumas passagens para abrir a janela das nossas reflexões.

O foco da cientista está na Política, “que tem horror à zona vaga das incertezas”, gerando o que ela chama de “batalha de influências”, referindo-se ao confronto entre as narrativas política e científica. “Zona vaga das incertezas”, eis o biscoito fino que quero dividir com você, com ajuda da Karoline e de outros, sem tocar em política ou pandemia, temas que hoje ardem numa polarização passional onde a desinteligência é nota dominante.

Todos sabem que o universo científico toma o bonde das dúvidas, das indagações, das investigações, motivações e experimentações, que a conduz às respostas, descobertas, soluções, explicações, enfim, às “certezas”. Fora desse ambiente, contudo, a atitude é outra, e Karoline usa a Política no diálogo com a Saúde como exemplo, distinguindo a narrativa política de necessidade da de oportunidade. Sigo a partir daqui por outra vertente. Como não tenho o dom da síntese e o assunto apresenta múltiplas facetas, me esforcei para ser objetivo.

Como só a Ciência trabalha com a dúvida para encontrar a verdade, mesmo que leve um tempo maior que o desejado e tenha de refazer alguns caminhos, não se pode negar a ela o mérito de a humanidade estar onde está. Sim, é claro que existe o lado negro dessa força, mas não é disso que estou falando. Aliás, nem é muito de ciência que quero falar. Certos campos do debate renegam o valor do saber científico porque ele é sempre um “estorvo”, um empecilho, uma pedra no caminho. Sei bem do que estou falando porque convivemos - eu e uns poucos - com esse persistente enfrentamento de ideias.

A narrativa política de necessidade surge exatamente quando a “sua certeza” precisa prevalecer, dar respostas, para que o fluxo das ações, propostas, ideologias e crenças não se perca no vazio. Sobre a narrativa política de oportunidade, Karoline diz:
A oportunidade se dá quando já existe uma mensagem política que se quer desenvolver ainda mais, e esta situação [de crise] é uma oportunidade para promover certas narrativas, que não são totalmente novas. É preciso organizar uma narrativa que vá produzir algo plausível, que tenha um sentido, seja coerente.
Não será difícil entender o que ela quis dizer, se colocarmos no centro da discussão qualquer uma de nossas crenças - místicas, religiosas, culturais, sociais, etc. Toda narrativa não científica precisa fazer sentido, dar materialidade ao que é imaterial na essência, e a Ciência não faz isso, não entrega resposta na bandeja, não dá o prato pronto porque não escreve sua história levianamente. Se não se dá tempo ao tempo necessário, aposta-se na contranarrativa política, mística, metafísica, no ideário, no imaginário, na doutrina, ou simplesmente na necessidade da uma satisfação pública. Ou isso, ou a estrutura - qualquer uma - desmorona.


É o que Karoline chama de batalha de influências, e eu de queda-de-braço: ou se segue a narrativa científica de sólida construção histórica, ou a contranarrativa, com seu repertório de necessidades e oportunismos. Tem-se assim, numa ponta, responsabilidade, na outra, estabilidade no gelo. Paradoxalmente, é a primeira, robusta e com lastro, que encontrará as respostas, enquanto a segunda, transitória e fugidia, seguirá sempre em busca de um porto seguro, equilibrando-se precariamente na corda bamba das circunstâncias.

Mas cabe uma pergunta: Não haveria em algum momento uma ciência ideologizada, que atendesse a interesses outros que não o da ciência dia pura? A neurofisiologista da USP, Cecilia Café-Mendes, ressalta que uma série de trabalhos tem discutido que as ciências exatas e as biológicas, antes vistas como racionais e supra-sociais, também possuem um peso ideológico que não pode ser ignorado, e isso abre espaço para contestações. Cabe outra pergunta: Estaria a Ciência isenta de opiniões e ideias pré-concebidas que estejam em voga em determinado momento social? Quais as ideias extra-científicas camufladas nas hipóteses e teorias? Ela responde:
Ao se discutir se a ciência apresenta ou não um cunho ideológico passamos a discutir a capacidade de contestação. Uma teoria científica pressupõe uma possível refutação, questionamentos sobre seus métodos e crenças como ocorreu, por exemplo, com a teoria geocêntrica desenvolvida por Ptolomeu, e com a teoria heliocêntrica formulada por Copérnico. Ideologias são recorrentemente tidas como verdadeiras e inquestionáveis. Entretanto, assim como as teorias científicas, as ideologias também são superadas e revistas dependendo do momento histórico.
Oswaldo Pessoa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, afirma que “apesar de as teorias científicas apresentarem um núcleo objetivo, há também teses interpretativas, ou seja, desvinculadas de experimentos”. Pessoa alerta, entretanto, que nem sempre uma dada interpretação é necessariamente a defesa de uma ideologia, ela simplesmente pode estar influenciada pela cultura reinante no contexto social do grupo. Cecilia entende que, dentro desse contexto, pode-se inferir que a base das ideologias também nos leva a compreender as bases da ciência. Umberto Eco entra na conversa com a questão de se saber se a Ciência não se comporta de forma dogmática quando se entrincheira atrás dos muros de um determinado paradigma, para defender seu poder e rotular como heréticos todos aqueles que desafiam a sua autoridade. É uma possibilidade que não se pode ignorar.

Não é por outra razão que Edgar Morin aconselha a fazer ciência com consciência, porque nela nada é absoluto como nada é relativo, solicitando, sempre, autorreflexão, autocrítica, convivência com a incerteza, a complexidade, o conflito e o jogo entre todos. A Ciência está a serviço da sociedade, ambas em transformações e releituras num permanente processo de autoanálise e autoconhecimento. Ambas não estão imunes a contaminações, deturpações, interpretações, fracassos e sucessos porque são interdependentes. Morin:
Vivemos uma era histórica em que os desenvolvimentos científicos, técnicos e sociológicos estão cada vez mais em inter-relações estéticas e múltiplas. Faz falta uma ciência capital, a ciência das coisas do espírito, ou noologia, capaz de conceber como e em que condições culturais as ideias se agrupam, se encadeiam, se ajustam umas às outras. Falta-nos uma sociologia do conhecimento científico.
O embate entre Ciência e Crença (porque no fundo é disso que se trata) atravessa milênios, com larga vantagem cronológica para a crença, que veio com o homem desde quando ele vislumbrou as estrelas, os fenômenos celestes e telúricos e não obteve respostas para o seu assombro. Então, passou a crer naquilo que ele próprio formulou em sua consciência para apreender o mundo. A Ciência, por sua vez, é mais “recente”, surgida há cerca de 5 mil anos com os sumérios, gregos e chineses, mas só se consolidou no século 16.


Pode-se crer que o aquecimento global seja uma bobagem, uma mentira, mas se a Ciência o comprova através de estudos técnicos e medições rigorosas por longos períodos em várias partes do planeta, então não há como negar a curva crescente da temperatura. O mesmo sujeito que acha a pandemia uma histeria estará amanhã na fila do teste, usando máscara.

Crença é escolha pessoal, por exemplo Terra plana), ciência é fato universal, como o teorema de Pitágoras. É assim que a roda gira, não há meio termo, ou a narrativa é desidratada pelar necessidade ou falaciosa pelo oportunismo, ou está assentada na materialidade do fato. Ciência não é mitologia, não é magia, não tergiversa, não torce, não discute, não reza, não espera. Ciência faz, e faz a diferença porque trabalha, transpira, semeia e colhe. 

Um comentário:

  1. Com relação às postagens mais recentes, acho que este texto remonta à dicção mais acadêmica e científica que antes predominava por aqui. Achei extremamente informativo e inteligente, mas, em alguns momentos parece que meu cérebro travou e tive de voltar ao ponto onde havia parado. De qualquer forma, adorei.

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